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Apareceu-me no telemóvel um anúncio da aplicação Duolingo, supostamente um jogo para as pessoas aprenderem línguas estrangeiras como quem estala os dedos. Chamou-me a atenção pelo teor da mensagem: “Aprender línguas na vida real”.
Enfim, pôr a “vida real” em confronto com a irrealidade, ou a virtualidade, é coisa própria de distopias, ou seja, ficções que nos remetem para um futuro em que a sociedade é algo muito negativo, usualmente castrador, vulgarmente atentatório da dignidade e da individualidade humanas. Embora a idade tecnológica que vivemos facilmente suscite o medo de perda de dignidade e de individualidade, estimulado pelos ambientes de realidade virtual ou (de forma mais ameaçadora) pelo desenvolvimento da inteligência artificial, a verdade é que, para já, mesmo as pessoas que vivem imersas nos ecrãs dos seus dispositivos, móveis ou não, estão na vida real. No pior dos cenários, essa vida pode ser vazia e despida de encanto, mas não se processa em qualquer dimensão alternativa, antes em diferentes patamares de realidade, como as redes sociais.
Mas há sempre no mundo real sinais de aproximação às distopias.
Comecemos por um exemplo que entra no foro da saúde mental. A moda dos “bebés reborn”, bonecos ultrarrealistas, fabricados por artistas/artesãos, que podem custar centenas ou até milhares de euros. Há pessoas que aplicam a esses monos inertes os seus instintos de maternidade ou paternidade, podendo chegar a pontos de alienação altíssimos (ou apenas a vontade de ser viral na Internet), como quando se reclamam cuidados de saúde para os bonecos. Chegam, até, à chico-espertice de quererem, com os seus pimpolhos de silicone, ter a prioridade devida aos bebés reais. Mas a alienação também toca quem está de fora a indignar-se: há dias, no Brasil, um sujeito agrediu um bebé verdadeiro, numa fila de supermercado, por julgar tratar-se de um “reborn”.
Passemos à indignação infundada. Anteontem de manhã, o autocarro em que eu seguia passou pela Praça da Batalha, no Porto, onde se juntava uma pequena multidão de muçulmanos, após a grande oração de Eid al-Adha (Festival do Sacrifício). Eram muitos, não tantos como os católicos congregados em Fátima em dias específicos, e estavam em paz, prontos para ir às suas vidas. Mas, dentro do autocarro, uma jovem mulher falou alto para a sua plateia de restantes passageiros: “Ainda dizem que são poucos! Isto é uma invasão, que tristeza!”. “O Porto agora é isto”, respondia alguém, outros sinais afirmativos ecoavam no autocarro...
Cristãos prontos a lançar os “infiéis” aos leões, como os romanos aos cristãos fizeram. Só que nem essa gente é cristã nem os outros são infiéis, tampouco invasores. Já os alegados cristãos, inimigos da inclusão e da fraternidade mergulhados na sua assustada realidade alternativa, empurram-nos a todos para a distopia, quando votam.