LCD Soundsystem: a banda cerebral que nos mostrou o coração e raptou uma encosta inteira. James Murphy é o novo santo canonizado de Coura.
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Aparentemente, acabamos de aparecer em todo o mundo: os LCD Soundsystem transmitiram os 100 minutos do nosso concerto do Vodafone Paredes de Coura via live streaming para os seus fãs e eles viram-nos em direto, como quem espreita indiscretamente e faz um zoom a descer até ao plano em que apareceram as nossas cabeças e estamos de mãos no ar. Estamos a segurar lâmpadas e elas desenham-se em ziguezagues de múltiplos pontos brancos, todos ateados ao mesmo e a pulsar em todos os pontos da encosta escura.
Parecia que estávamos em silêncio, mas não, estava a dar o "All my friends" e cantávamos, nem que fosse só para nós e para dentro das nossas cabeças, a repetir as letras do crash existencial e das conjugações sociais em que sabemos que tudo falha e tudo acaba - mas onde às vezes a justiça ou o amor entram de rompante. "It comes apart, the way it does in bad films, except in parts when the moral kicks in" - e James Murphy, prestes a perder a cabeça, contorcia-se branco à volta do microfone vintage enquanto continuava a falar para ela e a fazer a barba, Thea, tu dás demasiadas voltas, é cansativo, eu sei, mas é melhor quando fazemos de conta, iluminado por baixo, Murphy, com o fato como se estivesse a ser puxado pela centelha e pelos ombros, ou como se estivesse só a encolher-se perante toda aquela grandeza - havia uma lua crepuscular cheia a vigiar-nos o tempo todo -, como quem põe a pose fatal do anti-herói e diz que não há nada a fazer.
Requintado e melancólico e em momento algum de dança desatada (é por isso que esta instrução dancepunck de Nova Iorque que começou há 10 anos, acabou, e se reuniu no pós-choque de hoje parece às vezes fora do tempo e às vezes só cerebral), como se arredasse mesmo o coração para fora mas se negasse a ceder à euforia ou à finalidade da esperança.
O set de 100 minutos e 14 canções em que James Murphy, abraçado por um octeto de preciosismos e arquipélagos de botões, cercado de câmaras invisíveis (nunca vimos uma realização assim nos ecrãs que seguem o palco e nos deixam ver para perto deles e por cima deles, palmas) nos contou a sua vida de discussões e disrupções e nos deixou ver para dentro dele e da sua dignidade desesperançada - "mas talvez ela esteja errada e eu esteja certo, ou talvez ela esteja só errada", no hino vital do mal de vivre "New York i love but you"re bringing me down", uma magnífica opereta de peito feito em que ele parecia um santo coroado pelas chispas da bola de espelhos -, diminuiu inexoravelmente tudo o que tínhamos visto até aqui, até às duas da madrugada do 2.º dia do 24.º Vodafone Paredes de Coura.