Filha secreta de Louis Armstrong esteve em Setúbal para projeção do filme "Little Satchmo".
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Fruto de uma longa relação extramatrimonial de Louis Armstrong com a bailarina Lucille Preston, Sharon Preston-Folla tem hoje 65 anos, mas só em 2012 decidiu revelar ao mundo quem era e que o lendário músico tinha afinal uma filha, único descendente que deixou. Depois do livro "Little Satchmo: Living in the shadow of my father, Louis Daniel Armstrong", aceitou que a sua história fosse contada no filme "Little Satchmo" - como era conhecida pelo pai -, realizado por John Alexander. Não podendo estar presente na sessão de abertura do CLIT, o novo festival de cinema que se realiza em Setúbal, Sharon e John assistiram na cidade, na noite do dia 12, a nova projeção do filme.
O que a levou a revelar em 2012 a sua verdadeira ascendência?
Durante muitos anos lutei para perceber como é que poderia falar publicamente do meu pai. Muito poucas pessoas sabiam de quem eu era filha. Ao chegar aos 50 anos comecei a pensar no meu próprio legado e na minha própria história. Nessa altura já era avó. Não queria continuar a viver neste segredo. Não queria que morresse comigo.
O processo de escrita foi traumático ou libertador?
As duas coisas. Houve momentos muito dolorosos. Quando cresci, a minha mãe dizia-me que a culpa de tudo era da mulher do meu pai. Foi assim que descobri que era casado. A minha mãe nunca me queria dizer onde é que ele estava. Eu queria vê-lo e não parava de perguntar, mas era um assunto que não se podia discutir.
Como é que começou esse processo de escrita?
Li as cartas que ele escrevia à minha mãe. Vê-se que ficou muito feliz por ser pai. Percebi que a relação deles estava a acabar, que nunca poderia ter tido uma ligação normal com o meu pai. Isso foi muito doloroso. Durante alguns meses não consegui escrever nada.
Que impacto é que o livro teve?
Não digo que os fãs, alguns músicos e historiadores tenham ficado em choque, mas foi difícil de digerir. Duvidaram de quem eu era. Mas vendo as cartas e olhando para mim, era difícil de negar. O público em geral recebeu-me bem, ficaram contentes por saber que ele tinha tido uma filha e por conhecer a minha história.
Sentiu que a sua vida mudou?
Muita gente começou a dizer-me o que o meu pai significava para elas e a partilhar memórias de momentos passados com ele. Percebi que era algo que tinha perdido durante bastantes anos. Fiquei muito agradecida por estar a acontecer. Foi uma dádiva e ajudou-me a perdoar os meus pais. Agora estou em paz com o meu pai.
O que sente quando entra num local e estão a tocar uma música do seu pai?
A maior parte das vezes sorrio, porque essas eram as músicas que, mais do que quaisquer outras, ouvia em miúda. Ouvíamos em casa, na televisão, na rádio. É uma bela memória e eu sou uma grande fã da música dele. Às vezes gostava de parar e dizer, "é o meu pai a cantar", mas não o faço. Deixo isso para o meu marido.
Qual é a melhor memória que tem de Louis Armstrong?
Quando andávamos com ele pela estrada fora e o ouvia ao vivo. Todos aqueles momentos desde que ele saia do hotel até subir ao palco, os bastidores dos concertos. Estar ali e adorar o espetáculo. Estar ali com ele e com a minha mãe eram momentos preciosos.
Depois do livro, o filme. Já tinha passado pelo processo de escrita do livro, não pensou duas vezes antes de aceitar fazer o filme?
Não, porque na nossa cultura as pessoas leem, mas um filme, seja na televisão ou no cinema, chama muito mais a atenção. Muito mais pessoas iriam ter conhecimento desta história. E sempre quis que tivesse a maior audiência possível. Já tinham desejado trabalhar comigo mas, ou queriam mudar a história ou concentrar-se mais no meu pai. Para mim, o mais importante era contar a minha história, fora para isso que escrevera o livro. E o John percebeu isso.
Fale-nos um pouco de si, parece que gosta imenso de cozinhar.
É verdade, desde criança. Tive muita sorte porque sempre gostei de ir à escola e de aprender. Estudei numa escola católica, mais focada em aprender do que em outras distrações. A minha mãe levou-me a muitos sítios. Mesmo tendo ficado grávida aos 16 anos consegui terminar o liceu e a universidade.
O que fez depois?
Comecei a trabalhar na rádio, mas na parte administrativa. Adoro desafios. Por isso fui fazer a escola de culinária, para saber fazer bem as coisas. O que me fez ir para a frente como mãe jovem, foi querer fazer coisas. Tive uma vida muito melhor do que alguma vez pensei vir a ter.
Relacionado com a culinária, trabalhou em associações humanitárias.
Fui chefe de cozinha no banco alimentar da minha região. E fizeram um programa que consistia em ir a escolas e ensinar coisas básicas. Levávamos fogões e ingredientes e ensinávamos os miúdos a comer coisas mais saudáveis. Muitos deles só comiam bem uma vez por dia, na cantina da escola. Estou a pensar reformar-me no próximo ano e depois já me posso concentrar mais nessas atividades.
John Alexander: "Foi a voz da Sharon que me convenceu a fazer o filme"
O realizador John Alexander explicou-nos como tinha conhecido a história de Sharon Preston-Folla: "Parecia que estava escrito. Foi através da Leea Umberger, a produtora do filme. Tinha visto o meu trabalho anterior, "This is love", sobre o cantor de música soul Rudy Love, de que era grande fã e me tornei grande amigo. A Lea programou o filme na Florida, perto de onde a Sharon vive. Fui à projeção e percebi que a Lea tinha em mente fazer um filme sobre a história da Sharon. Disse-me que já sabia o que eu ia fazer a seguir e perguntou-me se eu sabia que o Louis Armstrong tinha uma filha. Eu não fazia ideia.
"Uns meses depois mandou-me o livro da Sharon. Nunca me esquecerei desse momento, de ler as memórias da Sharon no meu ipad, num comboio algures na Europa, A minha primeira impressão, que valorizo sempre muito, criativamente, foi ficar espantado como é que aquela história ainda não tinha sido contada em filme. De um lado uma das figuras mais populares de todo o mundo, talvez o americano mais famoso de sempre. E do outro a história mais secreta e escondida que se pode imaginar. O que me impressionou mais nessa primeira leitura foi a voz da Sharon. Era como se ela estivesse a falar comigo. Se eu pudesse replicar esse sentimento para o espectador, então o filme ia funcionar."
John Alexander não se esquece da primeira vez que falou com a filha de Louis Armstrong: "Tivemos uma primeira conversa telefónica. Nunca tinha ouvido a voz da Sharon. Foi a voz dela que me convenceu de imediato. Pela voz, percebe-se bem que é a filha do pai". E conclui: "O maior cumprimento que me podem dar não é acharem que o filme é interessante, mas que sentiram alguma coisa ao vê-lo. E há pessoas que vêm ter comigo a chorar".