O Governo pretende que os membros das IPSS (instituições particulares de solidariedade social) voltem a ser considerados funcionários públicos, para efeitos penais.
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O objetivo, que implica a revisão da lei, é que os mesmos daquelas instituições de direito privado possam responder por peculato, participação económica em negócio, abuso de poder, corrupção e demais crimes previstos no Código Penal para pessoas em funções públicas.
A intenção vem expressa, ainda que de forma pouco clara, na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, que o Conselho de Ministros aprovou a 3 deste mês. Trata-se de reparar uma lacuna apontada ao Código Penal por um controverso acórdão de fixação de jurisprudência que foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em fevereiro deste ano.
Este acórdão, que o JN noticiou em primeira mão, interpretou a lei no sentido de que "as instituições particulares de solidariedade social não devem ser consideradas "organismos de utilidade pública" e, por essa via, não deve ser considerado funcionário, para efeito da lei penal, quem desempenhe ou participe no desempenho da sua atividade". Com 13 votos a favor e cinco contra, o acórdão assentou no argumento de que as IPSS, ainda que tenham estatuto de utilidade pública, são pessoas coletivas de direito privado.
Regressar ao passado
Antes de o STJ se pronunciar, os dirigentes e outros membros das IPPS eram tratados, na maioria dos processos criminais, como funcionários públicos. E, na Estratégia de Combate à Corrupção que o Governo pôs agora em discussão pública por 30 dias úteis, assume-se que "importa rever o disposto no artigo 386.º do Código Penal, respeitante ao conceito de funcionário, para melhor cumprimento das exigências postas pelo princípio da legalidade criminal".
O documento não explicita o sentido da revisão da lei pretendido, mas, em entrevista ao JN na semana passada, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, confirmou que é o de "incluir" os membros das IPSS no conceito de funcionário. "Hoje temos realidades novas que têm a ver com o modelo do Estado e de áreas em que o Estado passou a intervir com grande intensidade, quer ao nível da dotação dos meios quer ao nível da supervisão. E, nessas realidades, temos pessoas que têm um estatuto muito próximo dos agentes públicos e que não estão abrangidas", justificou Van Dunem, tendo em conta que o funcionamento das IPSS depende, em grande medida, de dinheiros públicos.
A referida estratégia também justifica a revisão do conceito de funcionário com a "evolução verificada ao nível do setor público empresarial" e "da justiça militar", sugerindo que outros, além dos membros das IPSS, passarão a responder por crimes agora imputáveis apenas a titulares de cargos públicos. Porém, a ministra não quis "antecipar quem" serão os outros profissionais abrangidos, alegando que "essa análise está a ser feita agora".
Tal informação deverá ser conhecida, o mais tardar, quando o Governo fizer a súmula da discussão pública e aprovar uma proposta de lei, que, posteriormente, será apreciada pela Assembleia da República, onde os grupos parlamentares da oposição também deverão apresentar projetos de lei.
Acórdão perturba Justiça
O recente acórdão do Supremo que excluiu membros das IPSS do conceito de funcionário, para efeitos penais, causou perturbação na Polícia Judiciária, Ministério Público e tribunais. Atos que até agora eram peculato, abuso de poder, ou corrupção de titular de cargo público, por exemplo, poderão ser reclassificáveis como abuso de confiança, infidelidade ou corrupção no setor privado. Mas a tarefa pode ser impossível, em processos com acusação anterior ao acórdão. Porque o procedimento criminal de alguns "novos" crimes depende de queixa não apresentada em devido tempo. Além disso, os "novos" crimes têm molduras penais mais leves e, assim, prazos de prescrição mais curtos, que podem já ter sido atingidos.
A quem se aplica o acórdão
Ainda não há consenso, no setor da Justiça, sobre se o acórdão que não considera funcionários, para efeitos penais, os membros das IPSS, se aplica só a estes, ou aos membros de todas as pessoas coletivas de direito privado.
Direito de queixa não exercido
O Ministério Público investigou o presidente da Misericórdia de Castelo Branco (também vice-presidente da câmara) por participação económica em negócio. Como este crime deixou de ser aplicável, ponderou substitui-lo pelo de infidelidade, que carece de queixa, e perguntou ao presidente da assembleia-geral se queria queixar-se do presidente da direção. A resposta, adiantou aquele ao JN, seria negativa.