Advogados ou procuradores podem usar instrumento quando suspeitam que julgador será parcial. Se são os juízes a pedir para sair, a maioria dos pedidos é atendida.
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Quando, a 13 de janeiro último, dois homens acusados de terem agredido um futebolista à porta de uma discoteca entraram numa sala de audiências de Lisboa, a expectativa geral era de que o julgamento começasse momentos depois. Mas foi adiado, porque um dos advogados dos arguidos requereu que uma das três juízas que iriam julgá-los fosse afastada do caso, por suspeitas de parcialidade.
A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) chegou no passado dia 11: o requerimento foi rejeitado e a juíza deve manter-se no coletivo. Um desfecho quase certo, face à tendência recente: desde 2015, quatro em cada cinco pedidos de recusa de juízes feitos pelas partes ao TRL foram negados. Já quando são os magistrados a pedir para sair dos processos, o TRL responde "sim" à maioria .
Os dados foram fornecidos ao JN pelo TRL, o maior dos cinco tribunais de relação, responsáveis por apreciar os pedidos de escusa/recusa de juiz apresentados em processo criminal, cível ou laboral.
Desde 1 de janeiro de 2015, 83% dos 141 pedidos de recusa de juiz remetidos por defensores e Ministério Público foram rejeitados pelo TRL. Sete foram deferidos e os restantes 16 foram arquivados sem haver uma decisão final. Já das 407 situações em que, no mesmo período, foram os próprios magistrados a pedir escusa do processo, 337 (82%) foram aceites. Entre os restantes, 56 foram julgados improcedentes e 14 "findaram por outros motivos".
Diagnósticos distintos
A discrepância entre pedidos de advogados e de juízes surpreende o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, mas não o líder da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Soares.
"Não me surpreende o indeferimento generalizado [dos pedidos de recusa], porque isso parece-me óbvio face ao regime legal que existe, que é absolutamente estrito. Agora, haver tão grande diferença entre as escusas e recusas já me parece uma situação que justifica que se pondere o assunto", sublinha, ao JN, o bastonário dos advogados.
Para Menezes Leitão, faria sentido alargar os fundamentos que permitem o afastamento do juiz (ler ficha). "A meu ver, sempre que existisse qualquer dúvida fundada de imparcialidade, seria mais correto estabelecer o pedido de recusa", sustenta o bastonário.
O líder da ASJP discorda, atribuindo antes à conduta dos advogados a discrepância. "A maioria dos pedidos não tem sentido nenhum: são os advogados que percebem que o tribunal pode não tomar uma decisão conforme à que acham que devia ser e procuram afastar o juiz", sustenta Manuel Soares. Já quando é o juiz pedir para sair existe "em regra", diz, "razão séria" para tal.
No caso da agressão a um futebolista, o pedido de afastamento feito pelo advogado Gameiro Fernandes deveu-se a uma guerra antiga com a juíza Helena Leitão. Noutro processo, o advogado apresentou, em nome de uma cliente, queixa-crime contra a juíza, que respondeu na mesma moeda. Agora, no processo do futebolista, a juíza refutou a suspeita levantada sobre a sua imparcialidade e o TRL deu-lhe razão. O advogado reclamou e aguarda a decisão final.
Mais de 1100 solicitações em sete anos
Desde 2015, foram apreciados pelos tribunais da relação de Lisboa, Guimarães e Évora e pelo Supremo Tribunal de Justiça um total de, pelo menos, 1152 requerimentos de recusa/escusa de juízes, dos quais 650 (75%) foram deferidos. Somente os dados fornecidos pela Relação de Lisboa - que abrange os concelhos da Grande Lisboa e da região oeste, alguns municípios da margem sul do Tejo e os arquipélagos dos Açores e da Madeira - permitem, porém, distinguir entre escusas e recusas aceites e rejeitadas. Já o Tribunal da Relação de Guimarães adianta que a "existência de relações de amizade ou convívio com algumas partes" é o exemplo "mais comum" das "situações suscetíveis de gerar desconfiança quanto à imparcialidade do juiz". Os restantes tribunais da relação - Porto e Coimbra - não responderam ao JN.