O futebol tem um mal endémico. Quando se ganha pensa-se que está tudo bem, tudo é relativizado e até o jogar mal merece elogios. Mas a dúvida filosófica de Hamlet só serve para a vida: no relvado, é possível jogar bem e ganhar. Acreditem.
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Se alguém já ouviu um professor dizer "não importa se ensino bem ou mal" ou um pai e uma mãe dizerem "não importa se educo bem ou mal" ou um cirurgião dizer "não importa se opero bem ou mal" que me avise. Eu nunca ouvi. Mas já todos ouvimos treinadores e jogadores a dizer que "não importa jogar bem, o que interessa é ganhar". Porque eles dizem-no muitos vezes. Vezes demais. Culpa também - justiça lhes seja feita - de uma impaciência crónica de dirigentes aparentemente convencidos de que é possível fazer uma equipa funcionar e metê-la a jogar bem e a ganhar em três ou quatro semanas de trabalho.
Em 2016, não importou se Portugal jogou bem ou mal. Até nos gabávamos disso, de jogar (supostamente) mal. Os jogadores - até eles - davam vivas ao cântico que se tornou icónico. Afinal, a taça veio para casa e o maior feito da história do futebol português foi alcançado. Com mérito e com sorte (Gignac rematou ao poste aos 90+3 minutos da final), porque também é preciso falar dela quando se ganha e não apenas quando se perde. Cinco anos depois, a mesma música continua a ser evocada, mas agora já não tem piada, não é? E serve, quase sempre, para verbalizar críticas e atirar à cara daqueles que tanto a cantaram em 2016 e que agora, possivelmente, nem a podem ouvir.
Cantou-se tanto que não importa jogar bem ou mal que quase a aceitamos como verdade universal e absoluta. Quase acreditamos que para ganhar era preciso jogar mal e que jogar bem torna mais difícil conseguir vitórias. Quase acreditamos que só uma dessas coisas é possível; quase acreditamos que para ter uma é preciso abdicar da outra; quase acreditamos que ganhar e jogar bem estão em caminhos opostos. Mas a mentira tem perna curta.
Eu não queria ser operado por um cirurgião que dissesse que "não importa operar bem ou mal".
PS: Na ressaca da eliminação de Portugal do Euro 2020, há uma imagem que não pode deixar de fazer pensar. Nela aparecem Bruno Fernandes, João Félix e Bernardo Silva. É a primeira substituição de Fernando Santos no jogo com a Bélgica: os dois primeiros vão entrar, o terceiro vai sair, depois de mais 55 minutos encostado à linha, longe do centro do jogo e com escasso contacto com a bola. Ou seja, em nenhum momento de um jogo decisivo Portugal teve em campo, ao mesmo tempo, três dos melhores e mais talentosos jogadores portugueses. Não devem ter "raça e intensidade" nem serem incapazes de "dar equilíbrio à equipa". Mas para ganhar, muitas vezes, faz falta desequilibrar.