O que nos indigna, no caso TAP como nos incêndios, é a desigualdade
Uma ex-gestora da TAP saiu da empresa com meio milhão de euros de indemnização. Dois populares confrontaram, esta terça-feira, o presidente da República devido à falta de resposta do país a incêndios que todos os Verões se repetem. Estes dois episódios parecem nada ter em comum, a não ser a indignação que geram. Mas haverá um outro fator na raiz desse descontentamento: a desigualdade social, a maior geradora dos atuais conflitos latentes.
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Há vários motivos óbvios pelos quais o montante pago a Alexandra Reis, agora secretária de Estado, aquando da sua saída da TAP, geraram indignação: a transportadora enfrenta dificuldades, tem recebido apoio do Estado, despediu trabalhadores, reduziu salários e, aparentemente, há contradições acerca de quem terá partido a decisão.
Muito para lá das críticas ao processo - que, ao que tudo indica, foi legal -, parece-me seguro dizer que o montante da indemnização foi o maior impulsionador da indignação geral. São 500 mil euros, meio milhão. Ainda que o Governo já tenha pedido esclarecimentos à TAP e que o primeiro-ministro não garanta a permanência da secretária do Estado no cargo, este valor, por si só, gera revolta num país de salários baixos e rendas altas, ainda para mais em ano de regresso da inflação.
Não pode dizer-se que a indignação seja desadequada. E, para quem se indigna, interessa pouco que o processo tenha sido 100% legal e que Alexandra Reis possa mesmo ter direito a tudo. Também pouco importa que as indemnizações avultadas sejam prática comum em grandes empresas. Correndo o risco de extrapolar, fará sentido tirar uma conclusão mais geral deste caso concreto: as pessoas indignam-se porque sentem que ninguém deveria receber 500 mil euros de uma vez num país em que há dois milhões de pobres.
A desigualdade tem subido, como ainda recentemente o JN noticiou. Para receber o que Alexandra Reis embolsou de uma assentada, um português comum, que ganhe 1000 euros - salário já de si generoso para o paradigma atual -, terá de trabalhar mais de três décadas.
Se, em alguns dos "casos e casinhos" recentes, o maior alvo dos reparos tem sido o Governo e alguma prepotência própria das maiorias absolutas, nesta situação a crítica parece-me mais lata. Reprova-se, ainda que nem sempre de forma consciente, um modo de organização social que permite que uns embolsem indemnizações chorudas enquanto outros veem o preço da carne e do peixe subir em flecha, ao mesmo tempo que o senhorio lhes aumenta a renda dizendo que, "se não quiserem, há quem queira".
Marcelo confrontado em Murça
Outro episódio que marcou esta terça-feira foi o dos populares que, em Murça, confrontaram Marcelo Rebelo de Sousa. O tom foi ríspido, por vezes evitável, e o presidente tem pouca ou nenhuma responsabilidade por muito daquilo de que foi acusado. Mas, tal como no caso TAP, não só nada disso importa para quem se indigna como também não invalida a razão de ser dessa indignação.
Os reparos começaram por abordar a questão do impacto dos incêndios, que tinha levado Marcelo ao distrito de Vila Real. "Há 40 anos combatíamos os incêndios com mangueiras e baldes de água", afirmou um dos populares. "Passado todo este tempo, continuamos igual. Que andaram a fazer PS e PSD durante todo este tempo?", questionou.
Passar desse tema para outros foi uma questão de segundos. "Um bombeiro fica inútil e recebe 400 euros. O Sócrates foi preso e ganhava três mil na prisão. O [Manuel] Pinho ganha 15 mil euros por mês!".
A resposta de Marcelo foi quase cómica: "Há tribunais que julgam estes casos. Não é responsabilidade do presidente". Dizer isto é 100% verdade, mas também é 100% inútil. Sobretudo porque é duvidoso que o "respeito pelas instituições e pela separação de poderes" esteja no topo das prioridades de cidadãos que, por muito incongruente ou emotivo que possa ser o seu discurso, têm razões para se sentirem indignados.
Tal como, no caso TAP, os portugueses se indignaram com o meio milhão de euros de indemnização, em Murça, o sentimento de injustiça pelas parcas condições dos bombeiros foi o catalisador da revolta de quem sente que aos "políticos" e "corruptos" não falta nada.
Será este um discurso primário e perigoso? A muitos níveis, sim. Mas mais perigoso será continuarmos, enquanto sociedade, a ter uma concepção de "liberdade" que permita que o acumular voraz de milhões de euros por um punhado de afortunados possa sobrepor-se ao direito a uma vida digna. É isso que torna a desigualdade inevitável, assim como torna inevitável o surgimento dos falsos salvadores oportunistas que dela se alimentam.