A estratégia de marketing foi traçada no Japão e funcionou sem evidência científica. O número redondo entranhou-se como símbolo de uma vida saudável. Há, porém, novidades neste mundo.
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A recomendação de andar 10 mil passos por dia tornou-se um dos maiores símbolos de um estilo de vida saudável. "A origem deste número não é baseada na evidência científica, mas sim no marketing", sustenta Inês Mendes Andrade, médica especialista em medicina física e de reabilitação, lembrando como tudo surgiu e aconteceu. Na década de 1960, do século passado, uma empresa japonesa lançou um pedómetro com um nome que significava literalmente "medidor de 10 mil passos". O número foi escolhido estrategicamente: o símbolo japonês de 10 mil tem uma forma visualmente parecida com uma pessoa a caminhar. O marketing funcionou em todo o lado, em todo o Mundo. Um slogan japonês transformou-se num dado adquirido.
Patrícia Câmara, psicóloga, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, conhece a história, a origem mais comercial do que científica. "Isso, no entanto, não diminuiu o seu impacto, nem o reforço simbólico que representa quanto à importância de caminhar como forma de promover regulações psicofisiológicas mais salutares", refere. Ou seja, a ideia dos 10 mil passos como um ideal de saúde, uma espécie de meta simbólica, veio estimular a prática regular de atividade física.
O que é importante e benéfico para a saúde, sublinha Tiago Esteves, fisiologista. "Não se trata de um valor específico que deva ser adotado de forma universal, mas pode ser um bom método inicial para adotar um estilo de vida cada vez mais ativo de forma a conseguir uma melhor qualidade de vida, especialmente em pessoas sedentárias."
Caminhar todos os dias faz bem. É inquestionável. Melhora a saúde cardiovascular e cardiopulmonar, diminuiu o perímetro da cintura e da anca, reduz o peso corporal e a massa gorda. "Há também benefícios na pressão arterial, tanto sistólica como diastólica, na conservação da densidade mineral óssea em indivíduos de idades mais avançadas, e melhorias do perfil lipídico", realça o especialista.
Os benefícios sentem-se no corpo e na mente, reduz o risco de doenças crónicas e melhora a saúde mental. "No plano psicológico, a caminhada pode funcionar como um regulador natural do humor: reduz o stress e a ansiedade, melhora a clareza mental e facilita a organização dos pensamentos", adianta a psicóloga Patrícia Câmara. Um momento para meditar em movimento, uma sensação de fluidez psíquica.
Cada passo conta. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda pelo menos 60 minutos de atividade física moderada a vigorosa por semana para crianças e adolescentes, entre 150 e 300 minutos de intensidade moderada e 75 a 150 minutos vigorosos para adultos, e pelo menos 150 minutos moderados para idosos. Além disso, é aconselhado incluir exercícios de fortalecimento muscular pelo menos dois dias por semana.
E contar passos é boa estratégia? "Embora continue a ser uma forma prática e acessível de monitorizar, um estudo do "Journal of the American Heart Association" defende que a frequência cardíaca média diária e o número de passos oferecem uma avaliação mais fidedigna", responde Inês Mendes Andrade. Os passos mantêm-se, portanto, como método útil pela facilidade de medição.
Dez mil representam, em média, sete a oito quilómetros e um gasto energético de 240 a 500 calorias, dependendo das características de cada um, do ritmo, do tipo de pavimento, da duração da caminhada. "Embora o número dos 10 mil passos funcione como uma meta simbólica poderosa, por ser fácil de lembrar e mobilizadora, o essencial não está na métrica exata, mas sim no compromisso com a ação e regularidade. Mesmo com menos passos, os efeitos para a saúde global são significativos", observa Patrícia Câmara. "A repetição do gesto, quando vivida com prazer e sentido, é mais transformadora do que qualquer número que se possa oferecer."
Rotina, horários, refeições, sono
Há novidades neste caminhar. O número de passos diários necessários, para alcançar melhorias significativas na saúde, pode ser inferior aos populares 10 mil. A médica Inês Mendes Andrade recorda uma pesquisa que dá nota da diminuição entre 50% e 70% do risco de mortalidade em pessoas que caminhavam pelo menos sete mil passos por dia, em comparação com as que se mantinham abaixo dessa meta. "Esta conclusão era reforçada por um outro estudo que mostrou que uma média de 4400 passos por dia estava associada a uma redução de 41% no risco de mortalidade, com os benefícios a estabilizarem por volta dos 7500 passos diários."
E agora, mais recentemente, um novo estudo, dos mais completos feitos até ao momento, com mais de 150 mil adultos de todo o Mundo, acompanhados durante uma média de sete anos, revela que sete mil passos por dia reduzem em 47% o risco de morte precoce, comparando com quem anda apenas dois mil passos. Diminui doenças cardiovasculares em 25%, demência em 38%, depressão em 22%, quedas em idade avançada em 28%. A investigação acaba de ser publicada na revista "The Lancet Public Health", publicação reconhecida mundialmente na área da saúde pública.
Como devemos então caminhar? Cada perna, cada andamento. "Idealmente, a prescrição de exercício deve ser realizada de forma individualizada e direcionada para os objetivos e necessidades da pessoa", indica o fisiologista Tiago Esteves. Provas de esforço, avaliações funcionais, o historial de saúde, ajudam a traçar um plano. É fundamental manter uma boa rotina e ter consistência, adaptar horários e disponibilidades, não esquecer os tempos de repouso e de sono, respeitar os horários das refeições. Com intervalos para não sobrecarregar o corpo, sobretudo para quem não está habituado. "De manhã, normalmente, existe um aumento de energia, melhoria do estado de humor e melhor regulação do ritmo circadiano, no entanto, não é tão indicado para pessoas que têm dificuldades em acordar cedo", repara Tiago Esteves. "De noite, pode ser indicado para pessoas que gostem de um clima mais fresco e para relaxar após um dia stressante, porém, devem ter atenção à intensidade e à fadiga, de modo a não prejudicar o sono do próprio dia", acrescenta.
Tudo depende da pessoa, o que pode ser pouco para muitos, pode ser muito para alguns. "Naturalmente, é essencial nunca descurar a singularidade de cada pessoa, bem como o seu desejo, disponibilidade ou capacidade para caminhar, seja por motivos físicos ou psicológicos. Forçarmo-nos a caminhar em certos momentos - quando não há energia, sentido ou condições - pode ser contraproducente", salienta a psicóloga Patrícia Câmara.
As idades são um indicador. "Uma meta-análise, com dados de 47 mil participantes, revelou que os benefícios em longevidade se mantêm até cerca de seis mil a oito mil passos por dia em adultos com mais de 60 anos, e entre oito mil a 10 mil em indivíduos mais jovens", revela Inês Mendes Andrade.
"A realização de alguma atividade física é sempre melhor e mais benéfico do que não fazer qualquer tipo de atividade, por menor que seja. Não é necessário especificamente atingir todos os dias 10 mil passos, mas é importante evitar adotar um estilo de vida sedentário", avisa Tiago Esteves. Por tudo isso, apesar do mito há muito instalado, dar 10 mil passos nunca é uma perda de tempo, bem pelo contrário.
A evidência é clara por mais voltas que se deem. "Caminhar diariamente, mesmo sem atingir os emblemáticos 10 mil passos, continua a ser uma das formas mais acessíveis e eficazes de melhorar a saúde e prolongar a vida", destaca a médica Inês Mendes Andrade. Mais do que um número redondo, ou uma regra rígida, é um convite a contrariar o sedentarismo, a sair do sofá, a ter melhor saúde.