Não é nómada digital quem é - é nómada digital quem acredita. E quem tem a conta recheada dos dividendos da fé.
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Ser nómada digital parece-me tanto maneira de viver como maneira de pensar. Não existem estes nómadas sem uma finíssima demão de verniz ético. Trata-se de uma comunidade díspar que quer explorar o mundo para alargar os horizontes, partilhar intimidades, conhecimentos, culturas. Que quer inspirar e ser inspirada. Aprender e ser aprendida. Parafraseio o que ouço por aí.
Um nómada digital nunca está verdadeiramente cumprido porque não é coisa acabada. Além de ter computador, trabalho versátil e dinheiro, muitos nómadas mantêm um credo infantil. Ainda não se cumpriram, e nunca se cumprirão. O objectivo é aperfeiçoarem a imagem de si mesmos, pelo que a fotografia está sempre por tirar. São iterações malparidas do Steve Jobs.
Com o apoio do Governo, a tribo vai agora portugalizar os horizontes, em vez de apenas os expandir. Vai partilhar intimidades fugazes com a nossa comunidade.
Mas nós, os sedentários digitais, nós a populaça cá do pedaço, também temos um credo. É a fé da vidinha que tenta chegar ao fim do mês. É o salário mínimo. É o quarto de estudante para cima de quatrocentos euros. É o T1 a duzentos mil euros. É a prestação da casa a fazer upa upa na Euribor. É a gasolina pecaminosa. É a inflação a chagar o cabaz alimentar. É o Governo a manter o IVA perante os ganhos estatais com a inflação. É o Governo acenando com o cheque dos cento e vinte e cinco euros. Diria, o nosso credo é quase orar ao meteorito, para que venha.
E embora eu não goste da patina ética dos nómadas digitais, que na verdade é mais dizer do que ser, nada tenho contra a espécie. Sedentários ou nómadas, de cá ou de lá, viva cada qual como entender. Por vezes, também gostaria de ser um Steve Jobs de trazer por casa.
Os nómadas ficam com o verniz ético e o lifestyle. Mas nós é que ficamos com o problema moral: ao atribuir facilidades de acesso através do horrivelmente intitulado Visto de Estada Temporária e de Autorização de Residência para Nómadas Digitais, aliado a um regime fiscal especial, o Governo dá regalias sem retorno mensurável.
As consequências, essas, são palpáveis: benesses moralmente injustificáveis quando sofremos mais uma crise, e o agravar da pressão imobiliária.
Escritor