Fala-se hoje muito de uma crise de representação nas democracias. Ao mesmo tempo, exige-se um divórcio crescente entre governados e governantes, seja pelos critérios de seleção destes, seja pelas exigências de comportamento que lhes são feitas. Paradoxo? Sim, e perigoso para a saúde da democracia.
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De quem governa, espera-se proximidade dos governados. Isto porque se presume que governará melhor quem tiver uma vida quotidiana mais próxima da que têm a maioria das pessoas. Ter uma vida tão "normal" quanto possível seria condição para perceber e representar melhor os interesses e aspirações de quem é governado. Porém, na avaliação pública, aquela proximidade é penalizada e exige-se dos políticos a normalização da excecionalidade.
O caso da primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, ilustra bem o que acontece demasiadas vezes quando um governante é apanhado a viver uma vida normal. Tivesse ela sido filmada a trabalhar fora de horas, noites dentro consecutivas, e as reações teriam sido outras. De aprovação. Como, já agora, porque falamos de uma mulher na política, teriam sido outras se filmada a cozinhar, a cuidar dos filhos, ou a acompanhar o marido numa ida ao cinema ou à ópera.
O que é apreciado na vida e no perfil dos políticos, o que é considerado normal nestes, afasta-os muito dos cidadãos, impede-os de proximidade e empatia. Dos políticos espera-se que pratiquem ou exibam horários de trabalho que impedem a conciliação com a vida familiar. Ou que preencham agendas com eventos de representação que os impedem de ouvir o que tem para dizer quem não tem voz. O distanciamento assim produzido amplia o enviesamento da representação presente na sua seleção. Hoje, governantes e deputados são quase todos pelo menos licenciados, quando a maioria da população em Portugal nunca entrou numa universidade. São maioritariamente advogados, engenheiros ou professores, estando em extinção os representantes dos trabalhadores da indústria e dos serviços.
Discute-se o estilo e a moral, ignora-se a substância da política. Durante todo o tempo em que se discutiu o filme da primeira-ministra a cantar e a dançar, não se discutiu o modo como coordena o seu governo nem as suas iniciativas políticas. Aqueles que, como eu, consideram normal e desejável que uma primeira-ministra se divirta com os amigos ficam sem saber como avaliar o que interessa, a sua vida pública e política. E, no entanto, estamos a falar de alguém que promoveu a decisão histórica de abandono da neutralidade da Finlândia na sequência da invasão russa da Ucrânia.
*Professora universitária