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A pontuação do discurso de Lídia Jorge no 10 de Junho não engana, não embaraça e – felizmente – não peca por escassa. Foi essa a sua e a nossa defesa da liberdade, aquela que tanto querem pôr em causa quando assistimos a crimes como aqueles que vitimaram os actores e actrizes do Teatro A Barraca, nomeadamente Adérito Lopes, e quando se percebe que esses personagens neonazis, agressores bem reais, andam cá há muito tempo, há tempo de mais. Dois dos suspeitos do ataque foram condenados pelas mortes racistas de José Carvalho, dirigente do PSR, e de Alcindo Monteiro, no final da década de 80 e nos anos 90. Décadas depois, boa parte dos autores desses crimes comandam a extrema-direita violenta em Portugal. Como e porquê? Podemos começar por perguntar a alguma redacções de jornais onde há quem escreva, impunemente, mesmo com tinta de racismo, cadastro e fascismo. E aos tribunais que permitem que o agressor que atacou Adérito Lopes saia com um termo de identidade e residência, a mais leve das medidas de coação.
Depois, os factos e as reacções. O Relatório Anual sobre a Segurança Interna retirou a menção ao grupo neonazi que comandou esta acção. Tipicamente, Marcelo condena e o almirante pede que as autoridades façam justiça. Dois dias depois, sobre o ódio, Luís Montenegro nada diz e a ministra da Administração Interna só ontem se pronunciou. Carlos Moedas e Miguel Morgado têm a distinta lata, a propósito destes crimes, de colocar no mesmo plano a extrema-esquerda e a extrema-direita, como se houvesse alguma violência que se visse na “dita” extrema-esquerda. É verdadeiramente extraordinário que, perante o que se passou, responsáveis políticos ou comentadores tentem de imediato passar à teoria da equivalência e à proclamação do “Grande Mas”. Não há mas, nem grande nem pequeno. O grande perigo da violência está na extrema-direita, ao arrepio dos apagões em relatórios.
Sobre o sórdido. O que se viveu também no Porto, no 10 de Junho, onde dois homens que se intitularam como nazis defensores do Chega, fazendo a saudação nazi, ameaçaram e agrediram a directora da Associação CASA e a sua filha menor, quando estavam na sua carrinha de voluntariado a distribuir comida a pessoas em situação de sem abrigo na cidade. Ninguém pode normalizar estes comportamentos xenófobos, racistas e violentos. Essa normalização é a maior gasolina que podemos atirar para esta fogueira. As extraordinárias e corajosas declarações de Carlos Guimarães Pinto deixam claro que esta não é uma causa da Esquerda ou da Direita. Os crimes de ódio, em qualquer lugar ou dia da raça, não têm de nascer duas vezes para serem hediondos. Curiosamente, quando boa parte dos crimes são cometidos pelas mesmas mãos, percebe-se que a amplificação da impunidade é o maior incentivo a que a História se repita.