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No dia em que conheci Miguel Torga, na sua casa de Coimbra, estava ansiosa por estar frente a frente com o escritor que apreciava desde a leitura de os Bichos em criança. Falámos de muitas coisas, Torga quis saber outras tantas, por saber, através de uma amiga comum, que eu gostava de ler e de escrever. Foi um dia memorável.
Ao cair do dia, Torga deu-me um conselho: Se gostas de ler, ama as obras, mas não as confundas com o autor. Segui, escrupulosamente, o conselho até hoje, dia em que li a entrevista que o realizador cinematográfico Oliver Stone concedeu ao Jornal de Notícias e confirmei que devo continuar a ouvir as palavras de Torga e a distinguir a obra do homem ou da mulher que a realizou.
Oliver Stone é assumidamente polémico. É uma opção. Desta vez, é a energia nuclear, cujo uso defende, que dá o mote para a mais recente controvérsia documental. Nada de novo, dirão uns. Estamos no domínio da liberdade de expressão, alegarão outros. Assim é, de facto. Porém, afirmar que “ninguém no Ocidente ligou nenhuma [aos conflitos no Donbass em 2014], porque não se tem qualquer respeito pelos russos”, convenhamos que é algo aviltante.
Se há coisa a que nos habituámos no Ocidente, há muitas gerações, foi a admirar a riqueza da cultura da Rússia e a respeitar o seu poder político e militar, bem como o seu papel no contexto da sociedade internacional. Até por medo do seu potencial nuclear, a Rússia foi sempre respeitada.
Stone foi combatente na guerra do Vietname e, naturalmente, terá marcas desse período no seu pensamento. Ninguém fica igual depois de uma guerra tão violenta como foi a do
Vietname, mas daí a preferir a destruição do potencial bélico americano ao aniquilamento do arsenal de guerra da Rússia, há uma longa distância incompreensível.
Compreende-se que diga que um mundo pacífico não interessa aos americanos, porque a indústria do armamento envolve muitos milhões de dólares. Porém, os americanos não são os únicos a movimentar muitos milhões à custa das guerras. A Rússia está no outro prato da balança dos movimentos de muitos milhões de rublos com armamento.
Mais: a guerra sempre existiu e sempre existirá, mas há guerras e guerras, como diz o povo sábio, e esta guerra na Ucrânia resulta da invasão da Rússia em 24 de fevereiro de 2022, da anexação da Crimeia, pela Rússia, em 2014 e de um plano megalómano e fora do tempo de regresso à Rússia dos czares. No Ocidente, ninguém quer a terceira guerra mundial, mas também ninguém quer um gigante a espezinhar a Europa.
É tão simples, mas Oliver Stone não pensa assim. É livre de pensar de modo diferente e nós somos livres de recusar a sua obra de propaganda. Era muito melhor a produzir ficção. Como dizia Torga, ame-se (ou deteste-se, se for o caso) a obra de ficção, mas não a confundamos com o criador.