Corpo do artigo
Quando, em plena contagem decrescente para a Primeira Guerra Mundial, Aquilino Ribeiro escreveu, no seu diário, em 1 de agosto de 1914, em Paris, que “[...] apesar da exaltação”, não se extinguira “a última esperança”, que cintilava “teimosa, à margem quase do razoável [...]”, estaria longe de imaginar que um século depois essas palavras assentariam que nem uma luva a uma nova guerra na Europa – a guerra da Ucrânia.
Apesar dos “tremores da guerra”, de que também nos fala Aquilino, o certo é que os principais protagonistas continuam firmes na resolução de vencer esta guerra. Zelensky voltou esta semana a garantir a confiança nos seus soldados e nos governos das nações aliadas para vencer este conflito com a Rússia, desabafando: “Caso contrário [se os aliados não ajudarem a Ucrânia], ficarei a pensar em que tipo de mundo vivemos”.
Está certo Zelensky, porque o que está em causa nesta guerra é a clarificação relativa à natureza do mundo atual. Esta guerra na Ucrânia, impensável para a maioria dos líderes mundiais e dos povos europeus até ter começado, é a maior guerra na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Os números de mortos, feridos, desaparecidos, deslocados, refugiados, continua a aumentar ao fim de dois anos de conflito. É uma tragédia sem fim à vista em pleno século XXI.
Os números, porém, são diferentes consoante as fontes sejam os países em conflito ou as organizações internacionais, como, por exemplo, a ONU. As mais recentes informações da Ucrânia indicam a morte de 31 000 soldados ucranianos e de 180 000 militares russos. Estes são números que falam. Desconhecemos se são reais, mas sabemos que uma vez divulgados pela voz de Zelensky mostram ao mundo que o adversário perdeu muito mais soldados e evidenciam a bravura das tropas ucranianas e o seu êxito nos campos de batalha.
Em tempo de guerra, há que elevar o moral das tropas e semear a esperança entre os civis e isso o Presidente ucraniano faz com maestria, seja o discurso verdade ou mentira
da propaganda de guerra. É assim dos dois lados das trincheiras. A verdade só será conhecida no futuro, quando a guerra terminar e os documentos oficiais forem estudados por especialistas e, ainda assim, será sempre e apenas a verdade que os documentos permitirem ver. É provável que, em termos de baixas, se esqueçam as contas de somar quando as baixas são no próprio campo de batalha e se façam contas de multiplicar quando os mortos são no campo do inimigo.
A verdade é, para além do mais, subjetiva. O conceito de verdade tem sido sujeito a múltiplas interpretações filosóficas, no tempo longo dos séculos, entre a Antiguidade Clássica e a Época Contemporânea, destacando-se a análise crítica de Phillip Knightley, o jornalista-historiador que conferiu um novo sentido à afirmação do senador americano Hiram Warren Johnson, que, em 1917, declara que “a primeira vítima quando a guerra começa é a verdade”. A verdade reclamada pelos cidadãos e pelos media e controlada pelos Estados é a verdade comprometida pela guerra.
A verdade, enquanto reprodução da realidade pelos media, não existe. O que existe é uma realidade reconstruída pelos media, através do modo como o jornalista observa e se relaciona com os acontecimentos bélicos, o tempo e o espaço em que ocorrem e ainda com as fontes. É esta verdade reconstruída que edifica a representação que as sociedades têm de si próprias e das outras e nos mostra a multiplicidade dos esforços empreendidos por todos os atores da guerra para modificarem esta imagem unicamente de acordo com os seus objetivos. É (assim) a guerra!