Jogar pelo seguro (de saúde). E ver passar os comboios
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Um dos debates mais inconsequentes entre a nossa classe política tem que ver com a relação do Estado com o setor privado, em particular quando essa dicotomia abrange as chamadas áreas essenciais, como a saúde e os transportes. Podemos dar as voltas que quisermos, mas a verdade é que aos discursos patrióticos de alguns partidos sobre a necessidade de preservarmos a resposta pública a qualquer custo, os portugueses têm respondido com pragmatismo de mercado, procurando as opções que melhor os servem. Na área dos cuidados médicos, então, esse hiato é gritante. Os números que apresentamos nesta edição atestam bem do desencanto da população com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mesmo sendo esta uma das maiores conquistas da nossa democracia.
Todos os anos são batidos recordes de adesão a seguros de saúde. Cerca de 70% dos utentes fazem-no porque não se sentem satisfeitos com a oferta pública. E, ainda assim, a despesa do Ministério engorda a todos os orçamentos, em particular nos gastos com pessoal e medicamentos. Já todos percebemos que há um problema de gestão, e não de importância que conferimos ao SNS. Continuar a ter um sistema de saúde preferencialmente gratuito, aberto a todos, é um princípio inegociável. Mas isso não impede que seja possível pensar numa resposta concertada entre os vários regimes, sem cegueiras ideológicas e preconceitos. Se não for assim, os cinco milhões de portugueses que são hoje beneficiários de algum tipo de sistema de saúde depressa passam a seis ou a sete milhões.
E o mesmo podemos dizer da CP, a empresa pública de comboios, de novo na ribalta mediática a expensas da enésima paralisação de trabalhadores. Por mais que haja quem queira distorcer os factos, acenando com o fantasma do direito à greve, o que esteve mais uma vez em causa foi o completo alheamento de alguns sindicatos para com a vida de milhares de utentes (grande parte dos quais moradores em periferias e de baixos recursos) e, sobretudo, e mais grave, para com a sobrevivência de uma empresa que podia ser um exemplo de mobilidade verde, segurança e pontualidade. Os danos infligidos à CP por esta agenda político-sindical têm resultado numa fuga crescente dos utentes para os meios de transporte alternativos, em particular os autocarros. Olhemos para o que fez Espanha com o seu sistema ferroviário e coremos de inveja. Ou de vergonha. A greve é uma arma poderosa que deve ser defendida. Mas vulgarizá-la em prejuízo dos mais fracos, e corroendo o já debilitado capital de confiança de uma empresa pública que impacta diariamente a vida de tanta gente, é a pior forma de lhe conferir propósito.