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É um bom programa para a saúde dos portugueses, o que o Governo recentemente empossado apresentou e viu viabilizado na passada semana pela Assembleia da República. Como, de uma forma geral, eram bons os programas de governo para a saúde dos anteriores governos.
O que é preciso fazer está bem inventariado com as principais medidas, na forma vaga como geralmente são enunciadas, a suscitarem ampla concordância na sociedade portuguesa e em particular nas pessoas que pensam e têm opinião sobre as temáticas associadas à saúde.
O busílis está ou surge quando vamos mais fundo e procuramos descodificar o que realmente se pretende – ainda que muitas das vezes esta seja uma gaveta vazia – mas sobretudo quando passamos à prática e à concretização.
Com efeito, e a título de exemplo, merece nota positiva a inclusão, no que foram designadas por medidas principais, das referências: a) à criação do Registo de Saúde Eletrónico Único, esperando que esta, que é promessa de sucessivos governos há mais de uma década, seja agora concretizada; b) à evolução do modelo de financiamento para o conceito de “value based healthcare”, que constituiria mudança disruptiva no sentido de centralizar a prestação de cuidados no cliente e no valor, assim haja a coragem para a implementar; ou c) a um plano de motivação dos profissionais de saúde, que provavelmente reunirá a unanimidade quanto à sua prioridade e primazia, se a sua concretização for séria, consequente e até onde é precisa, apesar de todas as resistências e forças de bloqueio que se vão levantar.
A cereja no cimo do bolo está, porém, no enunciado da visão, que contempla a “aposta na saúde digital desde o ecossistema de dados em saúde a serviços de monitorização à distância do doente crónico”.
E assim parece confirmada a tese de que o desafio não está do lado do diagnóstico – o que não deixa de ser um avanço precioso face ao que há dois ou três governos atrás, de forma leviana e irresponsável, nos fez marcar passo e mesmo regredir com um banho asfixiante de ideologia bolorenta – mas antes no como, no detalhe e nas condições para se executar as mudanças preconizadas, dimensões que também neste programa de Governo são, como é tradição, omissas. É, no entanto, a este nível que, preocupantemente, as expetativas e as reservas verdadeiramente se colocam.
E aqui, onde o caminho não é mesmo nada fácil, além de desejar a maior e a melhor sorte do mundo a todas e a todos em quem recaem particulares responsabilidades neste processo, espero que seja possível encontrar o fino e inteligente equilíbrio entre a ousadia de avançar com as reformas que são (há muito) necessárias e a resistência à tentação de pôr em causa tudo o que foi (recentemente e por outros) feito, num reset tantas vezes cego. Arriscamo-nos, como demasiadas vezes tem acontecido, a ficar só com a segunda parte e, consequentemente, com mais entropia e menos eficiência em todo o sistema.
Nesta linha e voltando à lista das medidas principais para a saúde, a que refere “reestruturar a gestão do SNS através da sua reorganização assente em sistemas locais de saúde com a participação de entidades públicas, privadas e sociais”, deixou-me muito inquieto.
O busílis está ou surge quando vamos mais fundo e procuramos descodificar o que realmente se pretende – ainda que muitas das vezes esta seja uma gaveta vazia – mas sobretudo quando passamos à prática e à concretização.