Mikhail e Annia têm três filhos. São ambos engenheiros, tinham uma situação profissional estável, ele no setor público, ela numa multinacional. São uma família tradicional, que aproveita os tempos livres para passar tempo de qualidade com as suas crianças. Passear no parque, ir à praia ou comer um gelado são momentos, até há pouco, habituais na vida desta família. São uma família feliz. Porém, de um momento para o outro, tudo mudou. A guerra chegou e tudo o que conheciam desmoronou-se.
Corpo do artigo
Annia e as crianças viram-se obrigadas a fugir e a separar-se de Mikhail, obrigado a lutar pela sua pátria. Embora nunca tenha empunhado uma arma mais mortífera que uma pistola de paintball, vê-se hoje na linha da frente de uma guerra que não causou, desejou ou imaginou.
Estive a semana que passou, numa missão humanitária na Roménia, junto à fronteira com a Ucrânia. E nunca me saiu da cabeça a história do Mikhail e da Annia, que como já perceberam são a projeção de mim próprio, da minha mulher e dos meus filhos.
Estar na fronteira da Ucrânia é um processo de identificação contínuo. Pessoas como eu, famílias como a minha, crianças como os meus filhos, que de um momento para o outro são obrigadas a trocar o seu caminho de felicidade pelo purgatório da incerteza. Estão num limbo, sabem que o que foi não voltará a ser, mas o futuro ainda não se perspetiva, não se desenha, não existe. Vivem um presente triste e surreal. Desconfiam de tudo e de todos. As máfias, qual abutres, rondam-nos, aguardando pelo momento em que se poderão aproveitar de quem já quase nada tem.
A guerra é a desumanização. Qual buraco negro suga-nos os sonhos e torna a tristeza o estado normal.
Ajudámos 229 pessoas a vir para Cascais e reencontrar os seus familiares em Portugal, porém não consigo deixar de pensar em todas as pessoas que lá ficaram. Não consigo deixar de pensar no Mikhail, na Annia e nos seus três filhos. Não consigo deixar de pensar no quão abençoado e feliz sou.
*Engenheiro e autarca do PSD