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Assistimos perplexos à divulgação mediática de escutas telefónicas, desta vez a membros do Governo anterior, sobre assuntos de governação. Amanhã, podem ser sobre assuntos da vida privada de políticos, conversas com pessoas amigas, zangas com a família, sei lá o que mais. Vou corrigir. Mais rigorosamente, foram divulgados “resumos interpretativos” de conversas telefónicas, isto é, colocadas no contexto narrativo de quem as transcreveu ou divulgou.
Com quatro anos de escutas telefónicas, envolvendo certamente centenas de pessoas, não faltará matéria para contar histórias e entreter audiências. Poderíamos rir se o assunto não fosse tão sério, tão perigoso e atentatório da vida democrática. É preciso afirmar, com voz clara, que a divulgação de tais escutas é uma violação grosseira de regras básicas do Estado de direito democrático.
Podem existir dúvidas legítimas sobre se tais escutas deviam ter sido autorizadas e se deviam ter sido transcritas e interpretadas, uma vez que não têm qualquer relevância criminal nem integram qualquer processo de justiça. Porém, não há qualquer dúvida de que não podiam ser divulgadas e que a sua difusão constituiu um crime, uma vez que, para tal, a lei exige o consentimento dos intervenientes nas conversações gravadas e transcritas. Pessoalmente, não tenho dúvidas de que a sua divulgação, tal como em outros casos recentes de matérias à guarda de instituições de justiça, cumpriu objetivos meramente políticos e mediáticos prosseguidos de forma ilegal e ilegítima.
Quem são os responsáveis por tal crime, tipificado na Constituição e no Código do Processo Penal? Teremos de aguardar os resultados de um inquérito, mais um, que a procuradora-geral da República diz ter mandado abrir. E segue, como se nada fosse, ignorando que um caso tão grave não permite que os cidadãos confiem na justiça, na sua capacidade de os proteger, de garantir que as informações que tem à sua guarda estão seguras, não circulam, não são dadas nem vendidas, não são usadas para fins políticos ou mediáticos.
Mecanismos de controlo do acesso a informação sensível estão em funcionamento, há muitos anos, em muitas instituições. Da banca à autoridade tributária, até a instituições que trabalham com dados pessoais, o acesso à informação, seja por quem for, é hoje registado informaticamente. Esse registo permite que se faça rapidamente o rastreio de todos os acessos e se penalize os que forem indevidos ou injustificáveis.
Há muito que o problema da violação do segredo de justiça podia estar resolvido. Mas, pelos vistos, para o Ministério Público isso não é um problema.