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De Gaza julgávamos já ter ouvido tudo. A matança inenarrável (um novo estudo independente aponta para 75 mil mortes, só entre outubro de 2023 e janeiro deste ano), os ataques diretos a hospitais, escolas e campos de refugiados, as execuções de socorristas e paramédicos, um número insuportável de crianças atingidas – as últimas estimativas da UNICEF admitiam que mais de 50 mil menores tinham sido mortos ou feridos no âmbito da ofensiva israelita –, a recusa deliberada de água, comida e serviços essenciais a civis. Um genocídio inegável (e ainda assim, há quem continue a negá-lo), um calvário onde não cabe uma réstia de humanidade, o abismo da civilização a bailar-nos diante dos olhos, ante a nossa cruel letargia. Mas pode sempre piorar.
Agora, a Médicos Sem Fronteiras alertou para a “matança disfarçada de prestação de ajuda humanitária”. A organização refere-se à atuação da Fundação Humanitária de Gaza, criada por iniciativa de EUA e Israel, para, em teoria, fornecer ajuda humanitária direta a Gaza. A suposta fundação entrou em cena depois de Israel ter imposto um bloqueio total à entrada de alimentos, sob o argumento de que várias agências da ONU teriam ligações ao Hamas. Isto no mesmo território em que mais de 110 crianças são internadas diariamente por subnutrição.
Em comunicado, a Médicos Sem Fronteiras garante que “mais de 500 pessoas foram mortas e quase quatro mil feridas quando tentavam obter comida”. O relato do coordenador de emergência da organização é desconcertante: “Se as pessoas chegam cedo e se aproximam dos postos de controlo, são alvejadas. Se chegam na hora certa, mas há um excesso de pessoas e saltam os montes e os arames, são alvejadas. Se chegam tarde, não deviam estar ali, por ser uma zona de ‘exclusão’, então são baleadas.” A denúncia da Médicos Sem Fronteiras coincide com um trabalho do jornal israelita “Haaretz” em que oficiais e soldados das Forças de Defesa de Israel confirmaram, sob anonimato, terem ordens para disparar sobre as multidões de civis que se aproximam dos centros de distribuição militarizados da “fundação”. Mesmo sem sinais de ameaça evidente. “É um campo de morte”, resumiu um dos militares.
Razões de sobra para uma ação contundente da comunidade internacional no sentido de travar este flagelo inominável, certo? Nem por isso. Trump acenou com um possível cessar-fogo durante esta semana, mas, vindo do homem que garantiu que ia acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas, não há como confiar. Já os líderes europeus, reunidos em Bruxelas, concordaram em “prosseguir as discussões” a propósito do que está a acontecer em Gaza e de possíveis ações a adotar. Um murro na mesa daqueles (só que não). Enquanto isso, um homem acusado de corrupção no seu país continua a arrogar-se o direito de definir os limites do martírio a seu bel-prazer, sem que ninguém o trave. No inferno de Gaza, até a fome é um pecado mortal.