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Ontem de manhã, os serviços noticiosos de dois canais televisivos levaram a estúdio, ao mesmo tempo, comandantes de corporações de bombeiros voluntários convertidos em comentadores de circunstância. Naquele momento de espreitar as notícias antes de sair de casa, hábito que se mantém mas vem decrescendo em termos de interesse - todos mostram o mesmo sob perspetivas de algum modo padronizadas -, não foi a calamidade dos fogos florestais que me despertou a atenção, pois é um filme que sabemos de cor, repetido há tantos anos sem alterações sensíveis no guião. Aquilo em que reparei foi a forma como as duas jornalistas, condutoras das respetivas emissões, se dirigiam aos convidados. A mais experiente dizia "senhor comandante", a mais jovem ficava-se por "comandante".
Pode parecer uma questão de lana-caprina, mas não é. Em estúdio, o tratamento formal transmite uma ideia de seriedade e de respeito, não só pelo convidado, mas também por quem está a assistir à emissão. Já a familiaridade, que os defensores do jornalismo-espetáculo aplaudirão, é falta de profissionalismo. Não sei se alguém chamou a atenção da jovem para isso, nem esta questão, assim sem mais, seria suficiente para dela fazer crónica. Mas a falsa familiaridade no trato (e a regra é, no ar ou no papel, ser formal mesmo face a pessoas de quem se possa ser próximo) conduziu-me à forma brusca que hoje caracteriza, em geral, o trato entre as pessoas e a capacidade de argumentação. A rapidez de reação a que as pessoas julgam estar obrigadas rouba-lhes o sagrado tempo de ponderação.
Quando as pessoas olham o mundo dizendo "nós e eles", é provável que o caldo esteja irremediavelmente entornado. Quem o diz faz parte de uma tribo e entrincheirou-se na defesa dessa tribo, e ter certeza absoluta da justiça das nossas opiniões pode conduzir - e conduz muitas vezes - à incapacidade de ver com nitidez o nosso semelhante que pensa de outra forma. Isto toca muita gente de todos os grupos ou tendências, sejam políticas, clubísticas, alimentares, de defesa dos animais ou das plantas, de formas de vestir, de preferências literárias, de gostos musicais. Há uma urgência não apenas de tomar posição, mas de adotar a posição de um determinado grupo e ser por ele aplaudido.
No meio dessas coisas, umas são mais sérias do que outras. Se alguém que só coma beterrabas e couves-flores me chamar assassino vendo-me a enfrentar um bife, sorrio, mas incomoda-me viver num tempo em que o debate de ideias foi substituído pelo confronto de certezas. E digo-o assim, de forma abstrata, tomando posição exclusivamente pelo bom senso.