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O futuro é a mentira com que justificamos a brutalidade do presente. Esta é uma afirmação de Anthony Marra em “O czar do amor e do tecno”, publicado pela Teorema há alguns anos. O livro conta as vidas, até à terceira geração, de condenados pelo regime soviético a viver na Sibéria, em campos de trabalhos forçados, entre 1937 e 2013. Nas histórias que nos conta o autor condensa dois temas.
Em primeiro lugar, o tema do funcionamento da justiça num regime autoritário onde não há lugar à inocência. Apenas existem suspeitos, delatores e culpados. “A culpa e a inocência não determinam a sentença, é a sentença que determina tudo, incluindo a definição de culpa”. A sentença, baseada na delação de quem denuncia ou na convicção de quem acusa, precede a defesa ou a apresentação de qualquer prova. A condenação de inocentes é irrelevante. Importante é a promessa de um futuro que justifica o sacrifício de vidas, o apagamento da verdade, dos factos e, até, do passado.
Diria que o segundo tema destas histórias é a recuperação da dignidade humana por aqueles a quem tudo foi roubado. A vida vivida pelos condenados sem julgamento e deportados para campos de trabalho nas minas, umas centenas de quilómetros acima do Ártico, tem dois tempos. O tempo do medo, da repressão, da espera por uma improvável, mas sempre presente, libertação. E o tempo que se segue à abertura das portas da cidade, na sequência da “queda de um muro num outro continente”.
São agora sobretudo os netos dos condenados e deportados que desejam partir, que saem e procuram caminhos de liberdade. Porém, para estes, as possibilidades de participação numa nova economia acabam por se revelar escassas, quando não dramáticas. A marginalidade a que aquelas famílias estiveram votadas durante mais de 70 anos pesa como chumbo sobre as novas gerações, que parecem continuar condenadas ao fim do Mundo. Tudo mudara, nos costumes, nos consumos, nas possibilidades de entrar e sair. Mas, simultaneamente, tudo parecia imutável. O chefe do partido foi substituído por um “novo russo”, futuro oligarca.
Assim, a maior parte fica. O Mundo gira agora ao contrário, não é altura para se afastarem da casa que tinham construído, a partir do nada, uma vez que tudo lhes tinha sido roubado. Acompanham as mudanças que observam distantes, sem entusiasmo, sem perspetivas, mas também sem o desejo de promessas num novo futuro que exija novos sacrifícios no presente. Quando as promessas de futuro lhes mataram o presente ficaram sem presente e sem futuro.