Corpo do artigo
As ordens são associações profissionais que recebem do Estado poderes de autorregulação. É suposto que essa transferência beneficie sobretudo os utilizadores da atividade profissional autorregulada. Para isso, o Estado delega nas ordens poderes de decisão sobre o acesso e exercício da profissão, poderes de reserva de atos profissionais ou de títulos, dos quais resultam obrigações de inscrição, pagamento de quotas, estágios e formação complementar para os profissionais.
Há, em algumas ordens, abuso dos poderes delegados de autorregulação. Uns são visíveis e fáceis de contrariar com ajustamentos da lei. É o caso, conhecido, da justificação, duração e custos dos estágios e dos cursos de formação. Abusos neste domínio podem deixar de fora milhares de diplomados do ensino superior com condições para exercer a sua profissão.
Mais importante é a tendência para algumas ordens, com poderes delegados de reserva de atos profissionais, atuarem numa lógica de fechamento, definindo condições restritivas abusivas de acesso ao mercado de trabalho. Igualmente grave é o uso dos poderes das ordens para determinar o que deve ser ensinado nos cursos de ensino superior e o número de estudantes que podem aceder a esses cursos. Aqui, a influência das ordens é, em regra, corporativa e negativa, criando obstáculos à inovação pedagógica e científica, à pluridisciplinaridade, à flexibilidade de percursos e ao acesso ao ensino superior.
Ora, uma coisa é a liberdade de criar associações profissionais, que deve existir e ser fomentada. As associações profissionais desempenham um papel relevante no progresso do conhecimento, na salvaguarda da qualidade dos serviços prestados e na criação de referenciais deontológicos. Coisa diferente é a transferência de poderes do Estado para as associações profissionais que acontece sempre que se cria uma ordem.
A criação de ordens profissionais e a consequente transferência de poderes do Estado, sobretudo os de definição dos atos que apenas podem ser executados pelos profissionais nelas inscritos, deve ser excecional. Justifica-se quando se exige autonomia técnica reforçada em atividades em que há riscos de vida ou de morte (como nos médicos), riscos de segurança ou confiança (em alguns ramos da engenharia) ou riscos relacionados com as liberdades (caso dos advogados). Porém, mesmo nestes casos há limites aos monopólios de atividade com frequência procurados pelas ordens.
Poderes delegados são poderes avocáveis. Cabe ao Estado decidir as fronteiras dos poderes que delega em nome do bem comum.
*Professora universitária