Corpo do artigo
Há já alguns anos que está no ar a discussão sobre a proteção dos doentes no que se refere à utilização dos seus dados de saúde. Umas vezes com mais intensidade, outras com menos, mas sempre com posições muito vincadas, estribadas naquela moral imbatível de quem se reclama estar a defender os outros. Acrescido que, neste caso, os outros são os doentes, essa entidade quase mítica!
Foi mesmo possível passar para a opinião pública a ideia tenebrosa de uns tantos papões que estão fixados na apropriação, de forma ardilosa e sub-reptícia, de tais dados, para com eles fazerem as piores tropelias ao coitado e desprotegido cidadão/doente tendo em vista a obtenção de vantagens, económicas e outras, todas inconfessáveis.
E, vai daí, numa vertigem em aceleração permanente, criaram-se e continuam a criar-se regras, regulamentos, certificações e outros mecanismos que devem dar um gozo infinito a quem os concebe e um poder reconfortante a quem os dirige. Já para quem tem que os cumprir, na esmagadora maioria das vezes, senão sempre, para ações em benefício do cidadão e do doente, são enormes os custos e as dores de cabeça que trazem.
Um dos marcos neste processo é o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) que, no plano dos princípios, não pode deixar de ser considerado um valioso ativo civilizacional. Já a sua aplicação no concreto e na prática ao universo da saúde, em resultado das leituras mais ou menos fundamentalistas que as autoridades de cada país dele fazem, pode ser e, infelizmente, é motivo de crescente reflexão, debate e preocupação.
Gostava de ver estes temas mais discutidos por todos, e não só por uma minoria que tende a fechar-se para a realidade, o que passa por um esforço de descodificar as suas componentes, tornando-as percetíveis e capazes de serem avaliadas pelo comum dos mortais. Afinal, se temos o poder de com o nosso voto escolhermos quem queremos e quem não queremos que nos governe, o que estará a faltar para, de forma igualmente simples, dispormos da capacidade de decidir até onde estamos disponíveis a abdicar de uma fatia da nossa privacidade em troca de um bem maior que é o de uma melhor saúde para todos?
Para nós, europeus, e em particular para nós, portugueses, que nos deixamos sempre enrolar pela conversa de termos a legislação mais avançada do Mundo - nesta como em muitas outras realidades, em vez da mais avançada, importará a que resolve os nossos problemas -, uma das consequências deste statu quo paralisante é o de estarmos a atrasar a tão necessária inovação em saúde baseada e alavancada na generalização da utilização inteligente da digitalização e dos dados.
Apesar da dinâmica assinalável que a iniciativa EHDS (European Health Data Space) tem estado a conseguir, a dianteira que neste contexto levam os EUA e outras geografias ilustram esta preocupação.
Acredito que este é tema e caminho chave para construção da nova saúde que todos ambicionamos, pelo que julgo que faz sentido que nos interroguemos se, com a atual abordagem fundamentalista, são mesmo os doentes que estamos a proteger.