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Mariana vive há demasiado tempo embrulhada numa teia cerzida a medo e ansiedade. Nos últimos meses, recebeu centenas de mensagens de ódio, deu com o seu rosto plasmado em vídeos intimidatórios que circulam na Internet, viu o número de telefone e até a foto da filha bebé partilhados malevolamente em publicações nas redes sociais. Um clima de ameaça constante que lhe transformou a vida num pequeno inferno.
Desde então, conta a própria, não consegue focar-se no trabalho, passa noites em claro, teve de reforçar vezes sem conta as regras de segurança na escola das filhas, deixou de poder ir sozinha a eventos públicos. Se ainda não identificou o caso de que falo, questionar-se-á sobre o que fez Mariana. Perguntar-se-á que ultrajante ato pode justificar tamanha perseguição. Pois bem, Mariana, que na verdade é a escritora Mariana Jones, escreveu um livro. Um livro infantojuvenil chamado “O Pedro gosta do Afonso”, um livro que tão-somente “deixa a porta aberta às possibilidades, a podermos descobrir-nos sem amarras”. Um livro sobre liberdade e sobre amor, um amor sem freios, como todos deviam ser.
Foi lançado em fevereiro do ano passado e desde outubro que a escritora é vítima de ataques recorrentes na Internet, em particular por parte de um membro da associação de extrema-direita Habeas Corpus (presidida pelo ex-juiz Rui Fonseca e Castro) que, em vídeos partilhados nas redes, insistentemente a acusa de promover a homossexualidade infantil e a pedofilia. Não contente, a mesma personagem repetiu-lhe os impropérios olhos nos olhos e de telemóvel em riste, na Feira do Livro de Lisboa, quando Mariana apresentava um outro livro infantil, sobre Rui Nabeiro. Entendendo que o caso tinha ultrapassado todos os limites, a escritora apresentou queixa na PSP.
Mas, semanas depois, a apresentação do mesmo livro voltou a ser interrompida, no Porto, agora com o ex-juiz como protagonista. E nisto o inferno prossegue, o medo fez-se companhia do dia a dia, até as filhas têm pesadelos, uma delas já lhe perguntou se não podia simplesmente apagar o livro. Por sua vez, escritores e bibliotecários apelaram ao Governo para que tomasse medidas urgentes no sentido de impedir a continuação dos ataques da extrema-direita (até porque Mariana Jones não é a primeira a ser visada).
"Não podemos deixar que a censura, a perseguição e a intimidação voltem a fazer sombra sobre livros, autores e leitores", escreveram. O apelo é premente e não pode cair em saco roto. Nos 50 anos do 25 de Abril, há quem seja ameaçado e perseguido por escrever um livro chamado “O Pedro gosta do Afonso”. Isso deveria tirar-nos o sono a todos. É imperioso travar esta forma de censura, antes que ela nos trave a nós.