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Imagine que, de repente, um milhão de pessoas com deficiência ou doença prolongada, que precisam de ajuda para comer, fazer a higiene ou ir à casa de banho, ficam privadas do subsídio que lhes permite sobreviver com uma réstia de dignidade. Imagine que tal acontece num país farol das democracias europeias e pela mão de um partido que nasceu para proteger os mais frágeis e ajudou a construir o Estado social. Pode parecer o início de uma série distópica, mas está em vias de acontecer no Reino Unido.
A proposta de “reforma da Segurança Social”, que implica cortes no valor de cinco mil milhões de libras (seis mil milhões de euros) até 2030, foi anunciada na última terça-feira pelo Governo britânico, atualmente nas mãos do Labour. Por tradição, um partido social-democrata e de centro-esquerda. Uma das medidas mais polémicas é precisamente a revisão dos critérios de elegibilidade para o PIP, subsídio destinado a pessoas entre os 16 e os 64 anos que sejam portadoras de deficiência ou sofram de doença prolongada, e tenham dificuldades em pagar as suas contas por causa do aumento do custo de vida. Keir Starmer, o primeiro-ministro britânico, bem tem tentado justificar as mudanças com a necessidade de reduzir a taxa de desemprego, defendendo que os moldes atuais do programa têm contribuído para fomentar a exclusão do mercado de trabalho. Mas o argumento não convence e a ira tem sido geral, dos partidos de esquerda às associações de caridade, das figuras mediáticas a deputados do próprio Partido Trabalhista.
A Resolution Foundation, um think-tank britânico independente, já avisou que, ao abrigo destas reformas, cerca de um milhão de pessoas vão perder o direito ao subsídio. E não faltam associações a alertar que os cortes vão atirar mais pessoas com deficiência para a pobreza. Não está em causa a necessidade de encontrar formas de aumentar a sustentabilidade da Segurança Social, nem a importância de ter contas equilibradas num tempo em que a incerteza económica e político-militar dita as leis, mas, no dia em que normalizarmos que, para reforçar a defesa e a estabilidade financeira, teremos de deixar cair de vez os mais vulneráveis, estaremos a abrir mão do que nos distingue enquanto sociedade. E a linha que nos separa da barbárie será cada vez mais ténue. Que, em cima disso, seja o partido que ergueu os alicerces do Estado social a acender o rastilho da sua destruição é não só uma gigantesca ironia, como a potencial machadada final na adesão dos eleitores às ideologias partidárias. Ao romper com a matriz que o define, na ânsia de ser tudo para todos, o Labour arrisca não ser nada de verdadeiramente significativo para ninguém. E depois, o que sobra?