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A minha avó Carolina partiu há 254 dias. Fez das tripas coração para levantar o braço e acenar-me, sorrindo até eu sair do quarto. Tenho essa memória cravada na alma porque soube, nesse instante, que não voltaria a vê-la. Aos 86 anos, não era “velhinha”. Há uma fragilidade imensa ancorada ao diminutivo de uma palavra que abraça toda a dignidade e força do Mundo. Ser velho é tão mais do que menos. Recuso diminuí-la com palavras condescendentes porque a minha Carolina era um “tanque de guerra”. Levava tudo à frente, calçava sapatos gastos de quase nove décadas de histórias, batia com o punho na mesa e abraçava, ria mais do que chorava, era casa. A nossa casa.
Perdeu a mãe aos 16 anos, superou um casamento infeliz e um cancro da mama, mas nunca foi amarga. Pelo contrário. Era doce como o algodão numa festa infantil, brincalhona – já lhe perdoei as mordidelas nas minhas bochechas rechonchudas e rosadinhas – e senhora de uma antiguidade nas palavras que me comovia. Por alguma razão, o “calma!” da Carolina era como uma brisa fresca num dia de calor intenso. E a força da idade, aos meus olhos, protegia-a com uma espécie de manto de respeito, transformava-a numa figura imponente, destemida, segura de si. A minha avó (que ainda este ano pagava uma renda de 130 euros numa casa com quatro quartos, jardim e garagem) foi ver o filme “Música no Coração”, de 1966, ao cinema, participou nos bailes do Infante Sagres, nos anos 50, com vestidos feitos com as próprias mãos e sentiu no estômago os efeitos do racionamento de comida imposto pelo Estado Novo durante a II Guerra Mundial.
Os mais velhos são o nosso sangue, a nossa carne, a nossa história. Não são trapos que possamos deixar para trás. E nada me envergonha mais do que viver num país onde, no ano passado, 1671 pessoas com 65 ou mais anos tiveram de pedir ajuda à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) por serem alvo de situações de violência. Todos os dias – TODOS – quatro casos de idosos maltratados foram denunciados (mais 9,4% face a 2022) e arrepia-me pensar naqueles que permanecem entre quatro paredes. Qual será o número real? O último relatório da APAV revela ainda que quase 77% das vítimas foram mulheres entre os 65 e os 74 anos, sendo que os agressores são maioritariamente os filhos (32,2%).
Já para não falar nos casos de abandono: há muitos idosos deixados nas urgências por familiares que seguem caminho sem olhar para trás. Isto destrói-me por dentro, sobretudo por ter bem presente a felicidade de, na reta final, a minha Carolina ter tido alta no dia 24 de dezembro e termos tido a nossa “casa” em casa no Natal. Querida avó, eu sei, os velhos não são trapos.