Quatro valências da Cruz Vermelha são a casa de 90 pessoas, mas ainda há 18 para tirar das ruas. Alguns resistem.
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A vida de Artur é uma história de resistência em várias dimensões. Viveu "mais de 40 anos" na rua, passou por graves problemas de saúde e ainda assim recusou, mais do que uma vez, as portas do centro de acolhimento destinado a pessoas em situação de sem-abrigo que a Cruz Vermelha de Braga lhe abriu. Mesmo que isso significasse ter um teto e uma cama para substituir os bancos de jardim onde costumava dormir.
"Trouxeram-me para o centro, mas acabei por sair e voltar para a rua. É daquelas coisas que não sei explicar. Um dia, a equipa da Cruz Vermelha encontrou-me no centro da cidade e quase me arrastou de regresso. E aí fiquei mesmo", conta ao JN Artur Coutinho, de 62 anos, enquanto ajeita o cobertor que tapa a cama.
Atualmente, Artur é uma das 45 pessoas que esgotam a capacidade daquela valência da Cruz Vermelha de Braga, criada em 1999, a que se juntam 25 num outro centro de emergência social. Há mais 15 em apartamentos partilhados e cinco noutros apartamentos individuais ("housing first"), um deles com apenas uma pessoa.
"Ao todo, são 90 camas disponíveis para acolhermos pessoas em situação de sem-abrigo, que estão permanentemente lotadas e sempre com lista de espera", explica o coordenador da área de emergência social da delegação de Braga, Nuno Rodrigues.
Nas ruas, ainda estão 18 pessoas, mas faltam espaços para os albergar e é também preciso convencer muitos deles. "Há, de facto, quem resista a vir para alojamentos coletivos, onde os quartos são partilhados com outras pessoas, muitas delas com dependências associadas a comportamentos aditivos ou alcoolismo, e onde há regras para cumprir. Este é um problema real", refere o responsável.
Uma casa própria
A solução para acolher mais pessoas está, de acordo com Nuno Rodrigues, em ter cada vez mais respostas que respeitem a individualidade de cada um, como os apartamentos partilhados e, sobretudo, o "housing first", onde são alojadas pessoas de forma individual e permanente. "Foi assim que conseguimos acolher pessoas que estavam em situação de sem-abrigo há mais de 10 anos e que não quiseram entrar no alojamento coletivo", junta o coordenador.
Helena e António Ferreira partilharam cobertores na rua, viveram no centro de acolhimento e conseguiram, há quase 10 anos, acesso a um dos apartamentos individuais. "Temos a nossa própria casa e um contacto permanente com os nossos anjos da guarda da Cruz Vermelha. Era aquilo com que sonhávamos quando dormíamos na rua", explica Helena, de 63 anos, que viveu mais de duas décadas sem teto.
"Estive 12 anos no Algarve e os restantes em Braga e noutras cidades por onde fui passando. Foram momentos muito duros", lembra. Está casada com António há 10 anos, embora a relação tenha começado cinco anos antes, quando ele ainda recuperava de um desgosto amoroso. "Nessa altura vivia em casa dos meus pais, mas fui para a rua para poder ajudar a tirar a Helena de lá. Amo-a como nunca amei ninguém. Este era o nosso destino", garante.
Vida nova
Educador Ricardo já esteve "enterrado"
"Eu sei aquilo que muitas destas pessoas sentem", garante Ricardo Cruz, que hoje trabalha na Cruz Vermelha de Braga como educador de pares e tenta ajudar outros a ter uma "vida nova". "Cheguei a esta casa em 2016 com 47 quilos, a ouvir vozes, a imaginar coisas e completamente enterrado na droga, porque fui toxicodependente durante 30 anos. Tomei medicação, comecei a estabilizar, a cuidar-me e fiz uma desintoxicação que me permitiu deixar as drogas. Renasci", conta ao JN.