A irreverência estudantil, das tunas e das serenatas, a atravessar gerações na Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade do Porto.
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Avós, filhos, netos, trinetos, todos contemporâneos de um venerável mundo académico. Eis a Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade do Porto (AAOUP), depositária de tradições mais que centenárias e curadora de uma certa nostalgia da irreverência estudantil, a das tunas, a dos fados, a das serenatas, a dos saraus e a de toda a expressão artística que atravessa gerações e que por estes dias também se declara pelo centenário da Queima das Fitas da Universidade do Porto.
Um, aos 93 anos, não perde pitada da movida académica: Rui Bessa foi trabalhador estudante, dirigente do Orfeão Universitário do Porto, nos anos 1960, e concluiu o curso de Economia em 1971; outro, o próprio "Dux Veteranorum", Américo Martins, de 71 anos, sempieterno estudante, acumula meia centena de matrículas, primeiro em Engenharia Civil, agora em Ciências Agrónomas.
Jograis contra os bastões
Américo chegou ao encontro, no "Piolho", visivelmente fatigado dos excessos da véspera, do cortejo e de mais uma noite de Queima. "Até estou rouco", anunciou. "Eh, pá!, toma o Benzo-Diacol", atalhou-lhe um companheiro do AAOUP, a lembrar-lhe uma velha receita.
José Martinho dos Santos concluiu Engenharia Mecânia em 1971 e ainda se recorda do xarope da Bial, do qual os colegas de Medicina só traziam as embalagens e os frascos, cheios de... aguardente! Desses tempos, o engenheiro mecânico de 74 anos lembra "a boémia, os copos, as borgas" no órfeão. E a Rui Bessa ocorrem-lhe "os cabarets que havia no Marquês e na Rua do Almada".
Excursões à parte, para estes veteranos orfeonistas a Queima das Fitas é sempre ocasião para recordar esses "tempos do reviralho". O Maio de 68 mal tinha ecoado por cá, mas já germinava a semente de uma certa revolta, que a Polícia, de bastão em riste, tratava de conter, em investidas à Universidade. E foi dessa altura que também sobraram os jograis mais corrosivos no orfeão: "Grande fatalidade/que não lembra ao cartola/entrar na Universidade/quem nunca andou na escola".
Emancipação feminina
"Houve um tempo em que o estudante era visto como um revolucionário e a PIDE entrava por aqui adentro. Depois, após o 25 de abril, quem usasse um traje era visto como um reacionário", recorda o "Dux Veteranorum", a recuar aos tempos, entre 1971 e 1978, em que a Queima das Fitas foi suspensa, por ordem dos extremos. Da de 1979, a primeira decorrida em Democracia, ainda sobejaram muitos ressentimentos e não menos pedrada. "Foi a receção de quem não gostava de nós", lembra Américo Martins.
Dessa época, outro militante da AAOUP, o engenheiro eletrotécnico Carlos Soares, formado em 1972, também relembra o cerco "às colegas de Farmácia e de Ciências", o que terá gerado uma operação de resgate e de charme. "Os carros de Farmácia eram sempre os mais bonitos do cortejo. Tinham muitas florzinhas e muitas meninas", verifica Rui Bessa. "Já no meu curso, quando finalizei, em 1972, éramos 104 e três ou quatro mulheres", lamenta-se Carlos.
Era deste enquadramento social que o Orfeão Universitário do Porto também retirava proveito social, como espaço de libertação e de emancipação feminina. "As meninas podiam ir para o orfeão. Mas só com o acordo do pai", observa o Dux.
110 dez anos de história
Através do mais novo destes praticantes da AAOUP, que o JN juntou na esplanada do Piolho e na Reitoria, e que frequentou a Universidade do Porto entre 1987 e 1992, já se demonstra uma certa inflexão estatística do género: "No meu curso, 60% eram mulheres. Mas, noutras faculdades, como em Engenharia, os homens ainda eram muito predominantes", afirma o economista Miguel Lello, de 53 anos.
"Nos anos 1990, a Queima ainda mantinha muito do formato dos anos 1960. E até coisas agora vistas como politicamente incorretas, como as garraiadas", acrescenta Miguel, contemporâneo dos primeiros grandes concertos nos queimódromos. "Fomos nós que trouxemos o Quim Barreiros pela primeira vez".
O autor de "A Cabritinha" tornou-se então, desde os anos 1990, presença transversal a gerações de estudantes. Afinal, o mesmo fio que junta diferentes criações da AAOUP há 55 anos. "Há avós, filhos e netos. Gerações em linha. Todos contemporâneos de uma forma de estar", diz Miguel Lello.
A 15 de maio (domingo) celebra-se um aniversário redondo do que está na origem de tudo: o Orfeão Universitário do Porto faz 110 anos.