Com a proposta de obrigar mães a fazerem prova inicial de amamentação, do fim de direitos como o luto gestacional para o acompanhante da grávida e com bebés a continuarem a nascer nas estradas, recordamos o que a AD queria para as famílias há pouco mais de dois meses, em tempo de campanha eleitoral, e das "chagas" que a preocupavam. Mexer na violência obstétrica e sexualidade fora da Cidadania não está anunciado nem entre as promessas, nem no programa de Governo
Corpo do artigo
Cerca de dois meses depois de ter recebido luz verde ao programa eleitoral e vencido as eleições, o Governo da Aliança Democrática, sustentado pelo PSD e pelo CDS-PP, tem tratado as bandeiras da natalidade, das famílias - e consequentemente das mulheres - de forma, no mínimo, inesperada face ao que prometeu na campanha.
Num momento em que o anteprojeto da lei de reforma da legislação laboral causa forte polémica por conter propostas governamentais que passam por obrigar as recém-mães a fazerem ainda mais prova de que estão a amamentar ou por retirar o luto gestacional, entre eles o que protegia acompanhantes de grávidas que perderam os seus bebés, é tempo para recordar o que estava anunciado há dois meses, entre bandeiras e promessas.
A Aliança Democrática prometia, no seu programa eleitoral, "alargar e reforçar o regime da segurança e saúde no trabalho, o regime da igualdade e o regime da parentalidade e da conciliação trabalho/família". No documento, a coligação escreveu mesmo que queria "mudar a cultura de "penalização" de progenitores pelos empregadores" e prometeu "equacionar a criação de benefícios fiscais, no âmbito da revisão do respetivo regime, para empresas que criassem programas de apoio à parentalidade, como creches no local de trabalho para filhos de colaboradores, que contratassem grávidas, mães/pais com filhos até aos 3 anos, horários flexíveis e outros benefícios que facilitassem a vida familiar dos funcionários".
No âmbito da flexibilização laboral, a AD propôs, entre arruadas e bandeiras, "horários, teletrabalho, licenças parentais que permitissem que os pais ajustassem os horários para melhor conciliar as responsabilidades familiares e profissionais". "Maleabilidade", lê-se no documento, num "mercado de trabalho onde os contratos de trabalho permitam diferentes estilos de vida, prioridades, conciliação trabalho-lazer e contínuo investimento pessoal".
Já esta manhã de quarta-feira, 30 de julho, fica a saber-se, através do Negócios que o novo anteprojeto para alterações ao Código do Trabalho determina que o trabalho flexível, para pais com filhos com menos de 12 anos, terá em conta trabalho prestado "habitualmente" aos fins de semana ou feriados. Uma mudança que, recorde-se, colide com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça há três anos, de que o horário flexível "não exclui a inclusão do descanso semanal, incluindo o sábado e o domingo" no caso dos pais com filhos menores de 12 anos.
O novo documento não traz mais dias para os pais no gozo da licença inicial (atualmente nos 28 dias), mas torna obrigatórios os 14 primeiros dias - e não apenas os sete obrigatórios e sete facultativos - após o nascimento.
Olhando para o programa de governo, onde a palavra grávida não entra, é anunciado que o executivo irá "promover a igualdade de oportunidades e de tratamento entre mulheres e homens no trabalho e emprego, designadamente através das seguintes medidas como revisitar o regime das licenças de parentalidade e demais medidas de apoio à parentalidade e à conciliação entre a vida profissional e familiar, de modo equilibrado entre mães e pais". Anuncia-se agora o sentido.
Ainda sobre a gravidez, continuam a nascer bebés fora das maternidades ainda que continue o prometida reorganização dos serviços de Ginecologia e Obstetrícia. Só neste ano, como revelou a SIC Notícias, 42 bebés já nasceram fora das maternidades, número que inclui partos realizados em casa, em ambulâncias e até em viaturas particulares.
Violência obstétrica, violação e cidadania sem sexualidade
O programa eleitoral e o do governo não faziam qualquer menção a eventuais mexidas na lei da violência obstétrica, que foi uma das primeiras leis a ser tocada, ainda mal o novo governo PSD/CDS tinha tomado posse. Os centristas apresentaram um diploma para revogar a lei aprovada três meses antes e que promovia os direitos no parto e, em especial, eliminava a referência à violência obstétrica. Já os sociais-democratas acompanharam a ideia mas por via da eventual necessidade de revisão do clausulado.
A iniciativa acabou por prosseguir no debate parlamentar, descendo à especialidade, mas no sentido de uma melhoria, não reversão. Nesse mesmo dia, 11 de julho, era aprovado o primeiro passo rumo à possibilidade de a violação passar a ser crime público, numa iniciativa lesgislativa do Bloco de Esquerda, Livre e PAN. Os diplomas foram aprovados com os votos a favor do PSD, CDS, Iniciativa Liberal, PAN, Chega, JPP, Bloco de Esquerda, Livre e ainda de alguns deputados do Partido Socialista. Os grupos parlamentares do PS e do PCP abstiveram-se. Olhando para as promessas da AD, ainda em maio, o abuso sexual era apenas referenciado no âmbito da criminalidade juvenil e tendo em vista uma "maior especialização das forças de segurança dedicadas ao programa no âmbito da delinquência e criminalidade juvenil e grupal".
Em dois meses, foi avançada a prometida reforma da disciplina de Cidadania, causando polémica e múltiplas reações de profissionais, associações, escolas e cidadãos face à exclusão da sexualidade dos guiões da matéria, com alertas para os perigos da remoção destes temas nas escolas. A consulta pública decorre até 1 de agosto.
E as "chagas" da família?
No programa eleitoral da coligação, a palavra "mulheres" aparecia quase um quinto de vezes menos face à palavra "família". PSD e CDS-PP anunciavam que queriam por termo às "quatro chagas" que atormentam a "célula base da sociedade".
Em matéria de família, no âmbito da qual o programa sustenta que a natalidade e o combate ao "inverno demográfico" se tornam imperativos, a coligação diz-se "irredutível na luta contra as quatro chagas concretas que têm impactado muito negativamente a vida concreta das famílias portuguesas". E enumera-as: "a violência doméstica, o aumento da toxicodependência, a multiplicação dos sem-abrigo e enorme dimensão da sinistralidade rodoviária". A AD pretende, lê-se no documento, "continuar a apostar na família como a célula-base da sociedade e em políticas de apoio à família, de valorização da maternidade e da paternidade, enfrentando a grave crise da natalidade e incentivando as famílias a crescer".