Jurisprudência do Supremo iliba membros de instituições de solidariedade. Procuradora tenta solução para punir desvio de 400 mil euros na Figueira da Foz.
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O Ministério Público (MP) acaba de pedir ao Tribunal de Coimbra, nas alegações finais de um julgamento em curso, que condene seis membros de uma instituição particular de solidariedade social (IPSS) por quatro crimes de furto, devido a factos que, na acusação inicial, eram qualificados como crimes de peculato. Aquela foi a forma encontrada pelo MP para tentar atenuar os efeitos da nova jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, ao excluir elementos das IPSS do conceito de funcionário público, está a pôr em risco acusações por todo o país.
Seis membros da Associação Goltz de Carvalho tinham sido acusados de quatro crimes de peculato, um de participação económica em negócio (ilícitos específicos de funcionários públicos) e oito de falsificação por, alegadamente, se apropriarem de mais de 400 mil euros daquela IPSS da Figueira da Foz.
Mas, na primeira sessão, o coletivo de juízes decidiu vincular-se ao acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo, de 13 de fevereiro, no sentido de que os crimes próprios de funcionários públicos não podem ser imputados a membros das IPSS. E absolveu os arguidos, logo ali, de peculato e participação em negócio, fazendo prosseguir o julgamento apenas pelas falsificações.
Mas, há uma semana, houve nova surpresa, com o MP a pedir que aqueles arguidos sejam condenados não só por crimes de falsificação, mas também por quatro de furto qualificado, em penas que pretende, para quatro dos arguidos, iguais ou superiores a seis anos e, portanto, de prisão efetiva.
Acusação não alterada
O advogado dos arguidos, José Manuel Ferreira da Silva, mostra-se indignado com aquele pedido, dizendo que, antes das alegações finais, a procuradora do MP nunca se referiu a crimes de furto, não foi produzida prova sobre os respetivos factos, nem houve qualquer alteração da acusação (o que implicaria o contraditório da defesa). O mesmo advogado garante que, após os juízes absolverem os arguidos, na primeira sessão, de peculato e participação em negócio, a procuradora do MP limitou-se a pedir uma aclaração do despacho judicial.
No próprio MP, apurou o JN, também há quem entenda que deveria ter sido interposto recurso (e o prazo para tal já expirou) do despacho de absolvição na primeira sessão, para que não deixasse de se produzir prova sobre toda a factualidade da acusação original. Só assim, segundo tal entendimento, seria possível fazer uma alteração da acusação e trocar aqueles crimes por outros.
É com expectativa que se aguarda a decisão do Tribunal de Coimbra, por poder encerrar um caso em que o principal arguido é um administrador de um hospital público (Rovisco Pais, na Tocha) e ex-dirigente do PS da Figueira da Foz, António João Paredes, mas também por poder abrir pistas para a encruzilhada em que se encontram outros processos contra membros das IPSS. A decisão está agendada para 4 de janeiro.
Divisão
Controverso até dentro do Supremo
A nova jurisprudência do Supremo diz que os membros das IPSS não incorrem em peculato, participação económica em negócio, corrupção e demais crimes previstos no capítulo do Código Penal para o "exercício de funções públicas". Estes poderão ser substituídos por outros - como furto, abuso de confiança, infidelidade ou corrupção no setor privado -, mas com penas mais curtas e procedimento criminal dependente, nalguns casos, de queixa.
Treze juízes do Supremo votaram a favor daquele acórdão e cinco votaram vencidos. Prevaleceu que os membros das IPSS não são funcionários públicos, para efeitos penais, porque tais instituições, embora com estatuto de utilidade pública, são pessoas coletivas de direito privado. Os vencidos contrapuseram que milhares de IPSS do país são financiadas e fiscalizadas pelo Estado, estando até vinculadas ao Código dos Contratos Públicos.
Pormenores
Absolvido
O tesoureiro do Centro Social de Bairro, Famalicão, foi condenado a pena suspensa de um ano, por falsificação. Foi absolvido de peculato e participação económica em negócio, por causa da nova jurisprudência, e de branqueamento, porque aquela IPSS diz que ele devolveu os 1,7 milhões que dali desviara.
Arquivado
O MP investigou o provedor da Misericórdia de Castelo Branco por participação económica e, face à nova jurisprudência do Supremo, queria requalificar o crime como infidelidade. E, como este é semipúblico, perguntou a quem tinha direito de queixa, o líder da Assembleia-Geral, se o queria exercer. Mas este, próximo do outro, disse que não e o caso foi arquivado.