Maioria das vítimas não sabe que pode apresentar queixa. Debate sobre divulgação não consentida de imagens de cariz sexual chega esta quarta-feira ao Parlamento. Peticionários querem que seja crime público.
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No ano passado, a Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu 770 inquéritos por crime de devassa da vida privada e 795 inquéritos pelo crime de gravações e fotografias ilícitas. No total, são 1565 processos onde está incluída a divulgação não consentida de imagens íntimas, além de outro tipo de situações ilegais. Contas feitas, são mais de quatro inquéritos por dia e as queixas têm vindo a aumentar. A exposição na Internet de "nudes" (vídeos ou fotografias de alguém nu ou parcialmente despido) não é, por si só, considerada um crime em Portugal. Vários partidos querem alterar o Código Penal para autonomizar o ilícito e reforçar a proteção das vítimas. O tema estará hoje em debate no Parlamento.
A divulgação não consentida de imagens íntimas "envolve vários tipos de casos e com motivações diferentes", explica Carolina Esteves Soares, técnica operacional da Linha Internet Segura, coordenada pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
Nos últimos anos, os dados da PGR mostram um aumento nos dois tipos de crimes que envolvem estes casos. Em 2021, foram abertos mais 127 inquéritos por devassa da vida privada e gravações ilícitas do que no ano anterior.
Consoante as situações, a exposição de imagens de cariz sexual pode enquadrar-se em crimes de extorsão (se a vítima for ameaçada a troco de dinheiro), de pornografia de menores (se uma criança ou adolescente for a vítima) ou de violência doméstica (se a vítima e o agressor forem cônjuges, ex-cônjuges ou tiverem uma relação de namoro).
Banalizado como "piada"
Uma vez que a divulgação não consentida de imagens íntimas não é considerada um crime autónomo, não é possível ter a real noção da quantidade de vítimas ou de casos relacionados. O estudo "Faz Delete" - da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens, publicado em maio - enquadra um "leque de comportamentos sexualmente abusivos", como a captação não consentida, a partilha não consentida e a ameaça de partilha, no conceito de "violência sexual com base em imagens".
Num universo de 519 mulheres entre os 18 e os 25 anos em Portugal, mais de seis em cada dez sofreram pelo menos uma forma de violência sexual com base em imagens. A maioria das jovens diz ter sofrido de "cyberflashing", isto é, quando alguém recebe, sem o ter pedido, imagens de órgãos sexuais de outros, por exemplo, em caixas de mensagens nas redes sociais. "Foi uma informação que me surpreendeu", aponta Maria João Faustino, investigadora nas áreas da violência sexual, género e sexualidade. "O cyberflashing é muito banalizado como uma piada", apesar de atentar contra a liberdade de alguém, afirma ao JN.
Carolina Esteves Soares aponta que a maioria das vítimas "não sabe que pode denunciar" às autoridades a divulgação não consentida ou a ameaça de partilha de imagens íntimas próprias. O receio do julgamento e da humilhação e o impacto nas famílias, amigos ou nos colegas gera pânico, sendo que o primeiro passo tem sido, erradamente, eliminar as provas.
A perceção das "nudes" continua a ser mais penalizadora para as mulheres, refere Maria João Faustino. A investigadora usa o exemplo da "pornografia de vingança", em que se parte do pressuposto de que a vítima fez algo para merecer o crime. "Tiveram uma expressão de intimidade. A sexualidade não pode ser pensada como há 50 anos".
Até julho, a PGR abriu 386 inquéritos por crime de devassa da vida privada e 390 pelo crime de gravações e fotografias ilícitas. A petição lançada por Mariana Fernandes (ler ao lado), e que será debatida no Parlamento, pretende que a partilha não consentida seja crime público: qualquer um pode denunciar.
Partidos
Crimes
O Bloco de Esquerda propõe a criação do crime de pornografia não consentida, prevendo que quem fotografe ou filme alguém para fins pornográficos, sem consentimento, tenha até um ano de prisão. Já o PAN propõe o crime de divulgação não consentida de conteúdo de natureza íntima ou sexual, sendo que a pena pode ir até dois anos.
Penas
O PS avança com a proposta de uma pena até cinco anos de prisão para quem dissemine, sem consentimento, imagens da vida familiar ou sexual. O Chega propõe uma pena de prisão de um a cinco anos ou o pagamento de multa, com a possibilidade de agravantes.
Perguntas e Respostas
O que fazer se uma imagem íntima minha for divulgada?
De acordo com a APAV é importante ter uma prova digital, seja da fotografia ou do vídeo já divulgado e de conversas em que o agressor ameaça a vítima de que vai partilhar uma imagem íntima. Capturas de ecrã e cópias dos urls dos perfis são importantes guardar. Não se deve efetuar qualquer pagamento ao agressor. É aconselhável rever as definições de segurança nas redes sociais, para bloquear o acesso do agressor e pedir a familiares para fazer o mesmo.
Devo contactar as plataformas onde foi disseminado o conteúdo?
É possível denunciar o agressor nas plataformas ou nas redes sociais, onde foi divulgado o conteúdo íntimo. Se tiver dificuldades, pode contactar a Linha Internet Segura (800 219 090, linhainternetsegura@apav.pt ou preencher formulário no site). Caso a vítima tenha acesso ao conteúdo, pode inseri-lo em StopNCII.org, que ajuda a prevenir que a imagem seja disseminada por outras plataformas.
Posso apresentar queixa nas autoridades?
Sim. A divulgação não consentida de imagens íntimas pode ser enquadrada em vários crimes, desde devassa da vida privada, gravações e fotografias ilícitas, violência doméstica, ameaça ou coação. Tudo depende da situação em concreto. A APAV aconselha as vítimas a procurar apoio psicológico, caso considerem necessário.
Estudo
96% das mulheres que sofreram violência sexual com base em imagens sentiram impacto no seu bem-estar psicológico.