Ao contrário de outros polícias que não reconheceram as suas vulnerabilidades e só soubemos delas mais tarde, depois de se suicidarem, Pedro, "Paulo" e Hélder encararam as questões da saúde mental como algo natural e procuraram ajuda. Mas não deixam de imputar culpas à PSP e à GNR, por terem mergulhado no problema. Para as forças de segurança, fenómenos como o "burnout" ou o suicídio no seio policial ainda são embaraços que raramente se mencionam.
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Quando entrou num estado de "burnout", Pedro Carvalho deixou de ser capaz de andar com a arma que usa para cumprir a sua missão policial. Quando a quis entregar, qual o espanto, o comandante não a aceitou. "Ele nem quis saber o motivo pelo qual estava a fazê-lo", conta ao JN este agente, de 43 anos, no ativo há 23. "Só me disse que ainda não tinham passado 30 dias para ser desarmado".
Depois da incredulidade, o tom foi de aviso: "Mas o senhor está à espera de quê? Que lhe dê um tiro no joelho para me ficar com ela?", lembra. Ao contrário de tantos outros polícias, Pedro nunca tentou o suicídio. Mas, "em burnout", diz, "sinto-me capaz de tudo".
Sem recear consequências disciplinares, aceita dar o seu testemunho convicto de que está a chamar a atenção para os problemas psicológicos com que se debatem, em silêncio, alguns polícias. "Eu não me importo de dar a cara se isso significa ajudar os meus colegas e a Polícia a perceber que isto não é maneira de se tratar ninguém", diz.
Há três anos, deixou de ser um homem em silêncio, quando procurou ajuda para a situação de esgotamento em que se encontrava. Passou então a ser então acompanhado por um psiquiatra do Hospital Conde Ferreira e por uma psicóloga do Gabinete de Psicologia da PSP, a quem não deixa de tecer rasgados elogios. "Só não faz mais porque não a deixam. Está de mãos atadas", nota.
"A Polícia não quer saber"
Natural do Porto e a trabalhar na esquadra do Bom Pastor, Pedro vai à psicóloga porque quer, como gosta de salientar, e não porque é obrigado. "Se eu faltar às consultas nada me acontece. A Polícia não quer saber", atira. Mesmo reconhecendo que tomar as chefias pelo todo seria injusto, Pedro Carvalho não tem dúvidas: "Tudo o que leva à minha situação e à dos meus colegas que dão um tiro na cabeça" é provocado pela Instituição. "Nem é do serviço. São as atitudes", elucida.
Ao contrário de outros colegas, que diz terem sido deixados à sua sorte, Paulo Lopes (nome fictício, a seu pedido) conseguiu encontrar a sua própria luz. Até recorrer à ajuda médica, chegou a manifestar ideias suicidas. "Foram várias as vezes em que, ao levantar a arma e ao fazer os procedimentos de segurança, pensei acabar com este sofrimento", admite.
De baixa há cinco meses, diz-se "emocionalmente" esgotado. O diagnóstico médico aponta-lhe um "quadro depressivo" associado à atividade profissional que exerce como patrulheiro da GNR, há 22 anos. "Consegui ter a noção de que, no estado de burnout e depressão em que estava, não iria desempenhar um bom papel", reconhece este militar de 43 anos.
Antes, já tinha estado dispensado do trabalho por "pressão psicológica". Casado e com filhos, frequentemente interroga-se: "Como é que um pai, que é elemento de uma força policial e que é agredido na rua, entra em casa com a cabeça aberta ou com o braço partido e vai explicar a um filho, que sabe que o pai é polícia, que se magoou?".
"Não ver, não ouvir, não falar"
De forma a preservar a "pouca sanidade mental", também Hélder Gomes já chegou a recorrer aos serviços de Psicologia da Unidade Especial de Polícia quando estava na PSP. "O psiquiatra disse-me que o meu problema era [não seguir a máxima] "não ver, não ouvir, não falar", revela, indignado, ao JN.
"Se há críticas sociais à atuação da Polícia, se os homens lá dentro estão insatisfeitos, de quem é a culpa?", interroga-se. Para este ex-polícia de 37 anos, que acusa a PSP de criar a "lei da rolha" dentro da instituição, o problema é "cultural". Talvez por isso fale sem rodeios nem receios das "pressões" e dos "indícios internos de autoritarismo" que diz ter presenciado na instituição, onde completou 12 anos de serviço e de onde saiu em 2019.
"Não vale a pena falar de violência policial, quando há violência psicológica interna", admite. A rutura com a instituição dar-se-ia, de vez, há três anos, mas nem depois da sua saída da PSP deixou de estar estreitamente ligado à comunidade policial. Recentemente, tornou-se rosto do Movimento Zero, até então uma estrutura inorgânica, constituída por elementos da PSP e da GNR, que reivindica melhores condições de trabalho.
A discussão sobre a saúde mental dos polícias não é de agora. O tema tem sido desconsiderado continuamente e a perceção de quem está no terreno continua a ser de que os polícias portugueses ainda são dos que mais se matam na União Europeia, como já escrevia o JN há três anos. Segundo números citados em novembro pela revista "Visão", 160 terão terminado com a própria vida nas duas últimas décadas - em média, sete por ano. Em 2021, terão sido quase uma dezena.
Apesar de sublinharem que a temática constitui um "assunto de grande relevo e preocupação" e que o "bem-estar e a saúde" dos militares são uma "prioridade", as duas forças de segurança não adiantam números recentes sobre o fenómeno, apesar dos pedidos do JN. Também o MAI não o faz, nem esclarece se tal se deve a um desconhecimento da dimensão do problema, sobretudo desde que eclodiu a pandemia.
Problema complexo
As razões que levam alguém a tentar suicidar-se podem ser "diversas" e "até externas ao serviço", admite o presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, Paulo Jorge Santos. No entanto, "o facto de se ter como instrumento de trabalho uma arma" já representa, por si só, uma agravante.
Já César Nogueira, que lidera a Associação dos Profissionais da Guarda, condena a forma como se tem lidado com o problema. "Em Portugal, tem-se conhecimento dos suicídios nas forças de segurança pela imprensa ou pelas redes sociais e isso diz muito sobre o que está em causa", censura. Sem isentar o MAI e a GNR de críticas, acusa-os de terem fechado os olhos à realidade, "sabendo que a média de suicídios nas forças de segurança é superior à da população em geral."
Por ser um "problema complexo", Rui Amaral não tem uma resposta fechada. Sublinha que o fenómeno está a merecer uma "massiva preocupação" centrada na solução, sem que se perceba a sua origem. "O problema afeta as diferentes classes profissionais de forma igual? O local onde se presta serviço tem uma correlação? O afastamento, por via de colocação, da família por longos períodos prejudica os laços familiares e sociais que deveriam servir de equilíbrio?", interroga-se o presidente do Sindicato Nacional da Carreira de Chefes da PSP.
José Teixeira, do Sindicato de Polícia pela Ordem e Liberdade, culpa o aumento da "pressão profissional". Concretamente, "o maior desrespeito das populações pelas forças de segurança, as baixas remunerações, a carga horária acentuada e até mesmo, por parte do Ministério Público e dos juízes, uma alienação quanto ao desempenho profissional dos polícias, que são maltratados em tribunal".
Nuno Castro, vice-presidente da Associação Sindical Autónoma de Polícia, põe, no entanto, a tónica na criminalização dos agentes. "Estes homens, que cumprem a [sua] missão, são denunciados e passam rapidamente de polícias a arguidos, abandonados e entregues a si próprios", evidencia.
Vítor Pereira, do Sindicato Vertical das Carreiras de Polícia, não tem dúvidas de que o comportamento suicidário é potenciado pela exposição aos traumas da profissão, como homicídios e situações de violência doméstica, entre outras: "Existe a ideia errada de que os polícias aguentam [tudo]"
Ao JN, PSP e GNR afastam a ideia de que os suicídios estejam relacionados com o trabalho. No caso da Guarda, as razões mais invocadas para pedir apoio psicológico são "problemas pessoais, conjugais e de saúde física bem como problemas de ansiedade, depressão e luto". Já a PSP fala em "circunstâncias pessoais" na origem de problemas psicológicos, não sendo, dizem, "possíveis de antever e antecipar pelos próprios".
Para combater o problema dos suicídios, ambas as forças têm mecanismos preventivos, como por exemplo rastreios psicológicos, a formação de pares ou ações de sensibilização. "Com base no plano de prevenção, o número de psicólogos clínicos nas forças de segurança subiu de 42, em 2015, para os atuais 57", adianta o MAI. Foi também criada uma linha de apoio.
Apesar disso, a Guarda reconhece a dificuldade em chegar "de forma eficaz" a todos os militares, sobretudo aos "mais resistentes à vertente psicológica". Também a PSP refere que a solicitação de apoio, "nomeadamente psicológico", deve ser encarada "como positiva e natural".
Fontes ouvidas pelo JN reconhecem o "esforço" e as "tentativas de resposta" das duas instituições, mas apontam outro problema de fundo: com receio de represálias e de perderem, por exemplo, a possibilidade de concorrerem a concursos internos, "os profissionais tendem a não falar abertamente com os psicólogos da instituição". "Este apoio", acrescentam as fontes, "é condicionado pelas chefias, cuja única preocupação é que os elementos exerçam a sua atividade, independentemente de terem ou não condições para isso".
BARREIRAS PARA PEDIR AJUDA
Paulo R. Barbosa é médico no Hospital de Beja. Ao longo dos últimos anos, tem trabalhado na área da prevenção do suicídio. "Quando falamos deste problema, temos muito poucas pessoas que estão à vontade para dar a cara, para falar com fraqueza sobre o que lhes aconteceu e como conseguiram ultrapassar isso", começa por explicar ao JN, referindo que existem profissões que, pelo acesso a meios letais, estão em maior risco.
"A acessibilidade a um medicamento em determinadas doses, a pesticidas ou a uma arma pode tornar viável um pensamento suicida. Alguém que pense, mas que não tenha forma forma de o fazer, não estará tão em risco, como alguém que trabalha com uma arma de fogo", frisa o interno de Psiquiatria.
A acrescer a isto, continua, está o facto de haver uma preponderância muito grande de homens nas forças de segurança. "Os homens são tradicionalmente um grupo que tem mais dificuldade em pedir ajuda. E depois há todo o preconceito de falar sobre a sua suposta inferioridade, sobre estar doente, sobre ser-se incapaz de fazer o seu trabalho e as consequências que isso pode ter na sua progressão laboral. E há ainda a questão específica da arma de fogo, que é um símbolo de uma força de segurança, e é o que lhes dá autoridade também", completa o médico, alertando que a perda do armamento coloca o doente numa situação de inferioridade. "Isto também é uma barreira para o pedido de ajuda", nota.
Plano sem revisão
É outro efeito secundário da covid-19: o Plano de Prevenção do Suicídio das Forças de Segurança, em vigor desde 2007, deveria ter sido avaliado há dois anos e ainda não o foi, depois de ter sido revisto pela última vez em 2016. A culpa é da pandemia que prejudicou os "trabalhos", adiantou ao JN fonte do MAI. Enquanto não houver nova avaliação, mantém-se a incógnita sobre a necessidade de ajustar os mecanismos que previnem práticas suicidas entre os elementos da PSP e da GNR.
Realidade
Serviços centralizados
Ao contrário da PSP, que tem vindo a alargar os locais de consultas de psicologia clínica através da colocação de psicólogos ou da deslocação regular destes aos comandos, a GNR não descentralizou ainda os serviços de apoio psicológico. A Guarda contempla dois centros clínicos: um em Lisboa e uma delegação, no Porto, com 14 psicólogos. "Fora dos grandes centros urbanos, a situação é preocupante pela ausência de profissionais", admite César Nogueira, que fala ainda da "exclusão" dos acordos para consultas de psiquiatria e psicologia do sistema de saúde da GNR.
Estudo
Um estudo sobre os suicídios entre 2005 a 2014, na PSP, publicado em 2019, concluiu que estes foram, na sua maioria, consumados com recurso a arma de fogo (87%), regra geral a de serviço. Apesar do longo período de observação (dez anos), os investigadores depararam-se com limitações, "como a falta de informação para polícias aposentados ou despedidos" e de "uniformidade" na forma como as ocorrências foram registadas.