Volvidos 1414 dias, e depois de resistir a dois conturbados anos pandémicos e a inúmeros pedidos de demissão, a ministra da Saúde deixa o Governo, após ter sido reconduzida em março para um terceiro mandato, debaixo de fogo devido à crise nas Urgências, nomeadamente de Obstetrícia.
Corpo do artigo
O pedido de demissão, já aceite por António Costa e comunicado ao presidente da República, foi conhecido horas depois de uma grávida ter morrido durante uma transferência intra-hospitalar por falta de vagas em Neonatologia. O JN recorda outros episódios que marcaram os mandatos de Marta Temido.
Dos enfermeiros aos médicos, da relação com o setor privado ao excesso de mortalidade que coloca Portugal entre os piores da União Europeia, foram várias as polémicas que marcaram estes quase quatro anos de liderança de Marta Temido na Saúde. Num Serviço Nacional de Saúde exaurido.
Enfermeiros: do pedido de desculpas à sindicância
Estava apenas há dois meses no Ministério da Saúde, sucedendo a Adalberto Campos Fernandes, quando bateu de frente com os enfermeiros, em plena "greve cirúrgica". Recusando iniciar negociações com aquela classe profissional porque tal seria beneficiar "o criminoso, o infrator", Marta Temido pediria mais tarde desculpas à Ordem dos Enfermeiros por tais declarações. Mas as relações mantiveram-se sempre tensas e, em abril de 2019, o Ministério pediu à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) para realizar uma sindicância à Ordem dos Enfermeiros por forma a apurar eventuais ilegalidades dos seus dirigentes, concretamente da bastonária Ana Rita Cavaco.
As PPP e a relação com o setor privado
Findava o ano de 2018 quando, no Parlamento, Marta Temido anunciava a não renovação da Parceria Público-Privada (PPP) do Hospital de Braga por "indisponibilidade definitiva" do gestor privado. Rapidamente o grupo José de Mello refutava tais afirmações. O certo é que a PPP chegou mesmo ao fim e o Hospital de Braga integra agora o SNS como empresa pública. A relação do Governo com o setor privado da Saúde marcou vários debates parlamentares, nomeadamente nos picos de incidência de covid-19, gravadas que ficam as imagens de filas de ambulâncias à porta das Urgências do Hospital de Santa Maria. Com o Ministério da Saúde a apostar tudo na (sobre)capacidade do SNS para, só depois, em último recurso, contratualizar com o setor privado e social. "Trabalhar ombro a ombro é trabalhar, não é lá vai um cheque. Não é uma posição ideológica, mas uma maneira de estar na vida", respondia Temido, em maio de 2021, à deputada Ana Rita Bessa (CDS-PP) na Comissão de Saúde.
Da gestão da pandemia ao excesso de mortalidade
Nestes quase dois anos e meio que levamos de pandemia, Portugal já foi o melhor do Mundo e o seu contrário. A ministra da Saúde foi diversas vezes atacada pela gestão desta crise sanitária sem precedentes, que deixou milhares de consultas, cirurgias e rastreios oncológicos por realizar, num rasto de mortalidade nunca visto. Com pico horribilis em janeiro de 2021, quando a covid-19 chegou a matar, diariamente, quase 300 pessoas. Se há excessos de mortalidade identificados e associados à covid-19 ou às vagas de calor, outros há em que nenhuma das justificações anteriores explica o fenómeno na sua totalidade. Anunciando a tutela, em agosto, um estudo aprofundado para perceber as causas deste excesso de óbitos.
A resiliência dos médicos e novo ato de contrição
Um "mal-entendido", segundo a própria, que levou a um emocionado pedido de desculpas à classe médica em novembro de 2021. Tudo começou no Parlamento quando, a propósito do trabalho daqueles profissionais nos Serviços de Urgência, Marta Temido afirmou: "Estes profissionais são, de facto, chamados a profissões extraordinariamente exigentes. E também é bom que todos nós, como sociedade, e isto envolve várias áreas, pensemos nas expectativas e na seleção destes profissionais. Porque, porventura, outros aspetos como a resiliência são tão importantes como as suas competências técnicas. Estas são, de facto, profissões que exigem uma grande capacidade de resistência, de enfrentar a pressão e o desgaste e temos de investir nisso". Seguiram-se declarações zangadas dos sindicatos e da Ordem dos Médicos, obrigando a ministra da Saúde, com voz trémula, a pedir desculpa, "genuinamente e do fundo do coração". Esclarecendo: "Não disse em momento nenhum que é necessário recrutar profissionais de saúde mais resilientes", mas sim que "é necessário que todos façamos um investimento em resiliência, sobretudo quem trabalha em áreas tão exigentes como a Saúde".
Urgências de Obstetrícia e a morte de dois bebés e uma grávida
Se Marta Temido resistiu à pandemia, a crise vivida nos últimos meses nas Urgências, nomeadamente de Ginecologia/Obstetrícia, fez com que passasse da ministra mais popular neste Executivo (em Abril) para terreno negativo em julho passado, de acordo com a mais recente sondagem da Aximage para o JN, DN e TSF. Nos últimos três meses, dois bebés e uma grávida morreram, inquéritos foram abertos pela IGAS e pelo Ministério Público e mais uma comissão foi criada para apresentar soluções.
O primeiro caso deu-se na madrugada de 9 de junho, quando uma grávida, a quem fora inicialmente recusada a admissão na Urgência do Hospital das Caldas da Rainha, viria a perder o bebé após o parto. À assistente técnica que recusara inicialmente a admissão foi já instaurado um processo disciplinar pela IGAS, que recomendou ao Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Oeste a abertura de um procedimento disciplinar à médica assistente por considerar que a sua atuação é "suscetível de ter violado os seus deveres funcionais".
Já a 28 de julho, uma grávida de 38 semanas perdeu o bebé após fazer mais de 100 quilómetros até à Urgência do Hospital de Santarém porque a de Abrantes estava encerrada. O desfecho trágico mais recente aconteceu no passado sábado e foi nesta segunda-feira tornado público, sendo que horas depois era conhecido o pedido de demissão de Marta Temido. Uma grávida de 34 anos perdeu a vida depois de ter sofrido uma paragem cardiorrespiratória durante a transferência de ambulância do Hospital de Santa Maria para São Francisco Xavier, porque o primeiro não tinha vaga no Serviço de Neonatologia. A mulher, de 34 anos, apresentava, um quadro de pré-eclampsia.
Estatuto do SNS e médicos de família
Aprovado em julho passado, o novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde prevê mais autonomia para os hospitais e centros de saúde e uma direção executiva para o SNS, ainda por nomear. Figura esta que levanta dúvidas a Marcelo Rebelo de Sousa, que promulgou já o novo estatuto. "A intenção tem aspetos positivos. Mas o diploma levanta dúvidas em três domínios fundamentais que importa ter em atenção. O tempo, a ideia da Direção Executiva e a conjugação entre a centralização nessa Direção e as promessas de descentralização da Saúde", lia-se na nota divulgada na página da Presidência da República. Já a prometida atribuição de médico de família a todos os portugueses caiu por terra, comprometendo-se o Governo, nesta legislatura, apenas a aumentar o número daqueles clínicos. Numa altura em que há mais de um milhão de inscritos nos centros de saúde sem médico atribuído.